"Cidade da Vitória" é o primeiro livro de Salman Rushdie após o atentado que o escritor sofreu em Chautauqua, no estado de Nova York, no ano passado. Nem por isso é um livro desprovido de humor e até leveza, a despeito da quantidade de referências que um leitor como eu, ignorante da história medieval da Índia, se defronta ao longo dele.
A narração é engenhosa, como se se tratasse da paráfrase em prosa, por um autor irrelevante, de um poema alegadamente extraordinário —"Jayaparajaya", ou "Vitória e Derrota"—, escrito em sânscrito pela protagonista, a "bruxa" Pampa Kampana. Ela apenas o concluiu no seu último dia de vida, aos 247 anos, mantendo-se bela e desejável durante todo esse tempo.
A premissa dramática do poema é talvez o episódio mais marcante de todo o livro, quando Pampa assiste, aos nove anos de idade, o suicídio coletivo das mulheres do seu reino, ao sul da Índia, após a derrota dos homens numa batalha, no início do século 14.
Atônita com a imolação, a menina, que já não reconhecia a exclusividade masculina em nenhuma atividade ou profissão, jura jamais sacrificar a sua vida por homens. Recebe então a bênção da deusa Parvati, que passa a falar através dela.
Passados mais nove anos, instruída em todos os saberes, Pampa, sempre possuída pela deusa, cria uma cidade inteira, depois batizada de "Bisnaga", a partir dos sussurros celestiais que profere no exato lugar do sacrifício das mulheres.
A sua fala gera homens, mulheres, crianças, sonhos, pássaros, muralhas, habitações e tudo o mais. Essa lista que fiz de cabeça é a mais tosca possível, em face do capricho com que Rushdie constrói as suas enumerações, que são também um dos principais recursos da sua narração.
O poema divinamente inspirado de Pampa Kampana relata desde a fundação até a destruição final da cidade, passando pelos tempos de nascimento, exílio, glória e queda. Rushdie se demora mais no primeiro, que é também, a meu ver, o mais interessante e coeso.
Descontados os episódios fundacionais dos sussurros de Pampa, toda a história posterior de Bisnaga se constrói em torno das peripécias da disputa pelo Trono do Macaco —ou do Diamante. A lembrança de "Game of Thrones", de George R.R. Martin, é perfeitamente plausível, embora Rushdie em sua narração aplique uma perspectiva mais unificada e um desenvolvimento étnico-religioso mais histórico.
Também é notável a habilidade estilística com que o autor imita as crônicas me dievais, sua variedade e copiosidade, as quais, às vezes, se inclinam mais para contos de fadas, outras vezes para epopeias ou crônicas palacianas.
Tal estilização mimética serve tanto à alegoria como à paródia dos eventos históricos. A primeira situa a vida humana como uma luta entre homens comuns e mulheres extraordinárias, o que torna o livro uma declaração feminista dos direitos iguais entre homens e mulheres, incluindo o direito máximo de ascender ao trono e exercer o mando.
A paródia está no gosto por narrar ridículos dos poderosos, nas tiradas sobre as normas religiosas tacanhas e os costumes xenófobos e também na veemência sexual de Pampa, que não quer apenas ter ofício, poder e glória, mas também sexo em profusão, inclusive com estrangeiros.
Juntando tudo —história, poesia, alegoria e paródia—, o romance tem duas conclusões diversas, eventualmente passíveis de combinação. De um lado, anuncia a história como mudança constante, na qual tudo passa, mas nada mais rapidamente do que as melhores épocas —o que significa que, afinal, a escolha de idiotas para ocupar os postos de poder é mais natural do que o oposto.
De outro lado, Rushdie postula que, se alguma vitória é possível, não é a do poder, necessariamente provisório e curto, mas a da literatura que narra o "tempus fugit". É "Jayaparajaya" a verdadeira "cidade da vitória", e não Bisnaga.
Com esse giro metalinguístico final, Rushdie parece dizer aos senhores da vez que eles acabarão como pó, sombra e nada, como tudo o mais, e só restará a literatura a contar isso mesmo. Se isso se trata de um repto de Rushdie aos que decretaram a sua morte, é aposta meio óbvia, que deixo no ar.
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