Descrição de chapéu
Livros

Salman Rushdie decreta em 'Cidade da Vitória' que poderosos virarão pó

Romance, publicado após ataque contra escritor, se equilibra entre alegoria feminista e paródia dos senhores da vez

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Alcir Pécora

Professor titular de teoria literária da Unicamp

Cidade da Vitória

  • Preço R$ 99,90 (384 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Salman Rushdie
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Paulo Henriques Britto

"Cidade da Vitória" é o primeiro livro de Salman Rushdie após o atentado que o escritor sofreu em Chautauqua, no estado de Nova York, no ano passado. Nem por isso é um livro desprovido de humor e até leveza, a despeito da quantidade de referências que um leitor como eu, ignorante da história medieval da Índia, se defronta ao longo dele.

homen idoso de cavanhaque gesticula com as mãos enquanto veste camisa branca
O escritor anglo-indiano Salman Rushdie, retratado em evento de 2018 - Reuters

A narração é engenhosa, como se se tratasse da paráfrase em prosa, por um autor irrelevante, de um poema alegadamente extraordinário —"Jayaparajaya", ou "Vitória e Derrota"—, escrito em sânscrito pela protagonista, a "bruxa" Pampa Kampana. Ela apenas o concluiu no seu último dia de vida, aos 247 anos, mantendo-se bela e desejável durante todo esse tempo.

A premissa dramática do poema é talvez o episódio mais marcante de todo o livro, quando Pampa assiste, aos nove anos de idade, o suicídio coletivo das mulheres do seu reino, ao sul da Índia, após a derrota dos homens numa batalha, no início do século 14.

Atônita com a imolação, a menina, que já não reconhecia a exclusividade masculina em nenhuma atividade ou profissão, jura jamais sacrificar a sua vida por homens. Recebe então a bênção da deusa Parvati, que passa a falar através dela.

Passados mais nove anos, instruída em todos os saberes, Pampa, sempre possuída pela deusa, cria uma cidade inteira, depois batizada de "Bisnaga", a partir dos sussurros celestiais que profere no exato lugar do sacrifício das mulheres.

A sua fala gera homens, mulheres, crianças, sonhos, pássaros, muralhas, habitações e tudo o mais. Essa lista que fiz de cabeça é a mais tosca possível, em face do capricho com que Rushdie constrói as suas enumerações, que são também um dos principais recursos da sua narração.

O poema divinamente inspirado de Pampa Kampana relata desde a fundação até a destruição final da cidade, passando pelos tempos de nascimento, exílio, glória e queda. Rushdie se demora mais no primeiro, que é também, a meu ver, o mais interessante e coeso.

Descontados os episódios fundacionais dos sussurros de Pampa, toda a história posterior de Bisnaga se constrói em torno das peripécias da disputa pelo Trono do Macaco —ou do Diamante. A lembrança de "Game of Thrones", de George R.R. Martin, é perfeitamente plausível, embora Rushdie em sua narração aplique uma perspectiva mais unificada e um desenvolvimento étnico-religioso mais histórico.

Também é notável a habilidade estilística com que o autor imita as crônicas me dievais, sua variedade e copiosidade, as quais, às vezes, se inclinam mais para contos de fadas, outras vezes para epopeias ou crônicas palacianas.

Tal estilização mimética serve tanto à alegoria como à paródia dos eventos históricos. A primeira situa a vida humana como uma luta entre homens comuns e mulheres extraordinárias, o que torna o livro uma declaração feminista dos direitos iguais entre homens e mulheres, incluindo o direito máximo de ascender ao trono e exercer o mando.

A paródia está no gosto por narrar ridículos dos poderosos, nas tiradas sobre as normas religiosas tacanhas e os costumes xenófobos e também na veemência sexual de Pampa, que não quer apenas ter ofício, poder e glória, mas também sexo em profusão, inclusive com estrangeiros.

Juntando tudo —história, poesia, alegoria e paródia—, o romance tem duas conclusões diversas, eventualmente passíveis de combinação. De um lado, anuncia a história como mudança constante, na qual tudo passa, mas nada mais rapidamente do que as melhores épocas —o que significa que, afinal, a escolha de idiotas para ocupar os postos de poder é mais natural do que o oposto.

De outro lado, Rushdie postula que, se alguma vitória é possível, não é a do poder, necessariamente provisório e curto, mas a da literatura que narra o "tempus fugit". É "Jayaparajaya" a verdadeira "cidade da vitória", e não Bisnaga.

Com esse giro metalinguístico final, Rushdie parece dizer aos senhores da vez que eles acabarão como pó, sombra e nada, como tudo o mais, e só restará a literatura a contar isso mesmo. Se isso se trata de um repto de Rushdie aos que decretaram a sua morte, é aposta meio óbvia, que deixo no ar.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.