Descrição de chapéu Livros Entrevista da 2ª

Reescrever autores mortos é armadilha e censura nunca resolve, diz Salman Rushdie

Escritor diz à Folha que não deixa eventos trágicos, como o atentado a faca que sofreu, afetarem sua literatura

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homem idoso careca e de óculos coloca a mão no rosco em foto em preto e branco

O escritor anglo-indiano Salman Rushdie, que publica o novo romance 'Cidade da Vitória' Rachel Eliza Griffiths/Divulgação

São Paulo

Na primeira entrevista concedida depois do atentado contra sua vida, Salman Rushdie enumera as partes do seu corpo que sofreram feridas —o pescoço, o rosto, o peito— quando o jornalista pergunta quantas facadas foram no total. "Sabe, eu não estava contando", responde ele.

Então Rushdie e o entrevistador, David Remnick, da revista New Yorker, se soltam num riso descontrolado por longos segundos. É um momento breve, mas revelador da personalidade do autor de 76 anos.

Já faz mais de três décadas que o escritor nascido na Índia e radicado no Reino Unido tem uma recompensa pela sua cabeça. Quando publicou "Os Versos Satânicos", em 1988, o aiatolá do Irã se ofendeu com a representação de figuras religiosas no romance e declarou uma fatwa —espécie de sentença de morte— sobre seu autor.

Rushdie viveu com escolta por muitos anos, mas decidiu não adotar uma postura de vítima, continuando a escrever literatura que não fosse maculada pelo medo nem pela vingança, em suas próprias palavras.

Também costuma lamentar a dimensão que essa história trágica ganhou em sua biografia, às vezes eclipsando sua obra. "Sempre achei que meus livros são mais interessantes que a minha vida. Infelizmente, o mundo parece discordar", diz ele na mesma entrevista.

Agora Rushdie avança seu projeto literário com "Cidade da Vitória", um romance terminado poucas semanas antes do ataque perpetrado em agosto de 2022 pelo extremista Hadi Matar, na cidade americana de Chautauqua, mas publicado nos Estados Unidos em fevereiro deste ano.

O livro conta a vida de uma deusa capaz de criar um povoado, depois desdobrado numa dinastia, com o mero ato de sussurrar palavras —um elogio ao poder da fabulação, inspirado na história real do império que precedeu a Índia moderna.

A Companhia das Letras traz agora a obra ao Brasil, e Rushdie escolheu falar com exclusividade à Folha por email —como se verá, com muito mais gana de discutir literatura que qualquer outra coisa.

O sr. já declarou que está escrevendo algo sobre o ataque que sofreu no ano passado. Mas também disse em uma entrevista que uma parte sua queria deixar isso tudo para trás. O que levou o primeiro impulso a vencer o segundo?

Eu sou um escritor. Descobri que queria escrever sobre isso. Então, estou escrevendo.

Gostaria de saber se tem se sentido mais temeroso na rotina diária. O sr. disse à revista Time que queria retomar sua vida da forma mais completa possível. Conseguiu?

Sim, obrigado. Fico grato pela preocupação, mas, no geral, as coisas estão bem.

Em ‘Cidade da Vitória’, uma comunidade é criada pelas palavras de Pampa Kampana, um comentário sobre o poder da ficção em moldar a realidade. Acredita que os conceitos de Estados e nações são, ao final, pura ficção?

Não, eles existem, justamente porque acreditamos neles. Da mesma forma, o dinheiro não faria sentido se não acreditássemos no seu valor. O mesmo para a ideia de um deus ou deuses. A imaginação é uma coisa poderosa. Cria a realidade.

A religião é ainda mais claramente feita de narrativas. Seu romance tem comentários espirituosos sobre como os seguidores de fés diferentes acabam se contrapondo por razões que soam fúteis. Chegou a alguma conclusão sobre o porquê de isso acontecer?

Na minha Bisnaga [o apelido do país de que fala o romance], há períodos de interação e tolerância religiosa e outros de tensão. Como o livro se passa ao longo de dois séculos e meio, parece razoável retratar sua história dessa forma.

O poema épico escrito por Pampa Kampana se chama "Vitória e Derrota" e, no romance, assim como na vida, há vitórias e derrotas, para a tolerância, para as mulheres, para a própria Bisnaga.

Um estrangeiro, o português Domingo Nunes, tem um papel chave em escolher o nome do país como ‘Bisnaga’, na tradução brasileira. Parece um comentário sobre como imigrantes são essenciais para tornar uma cultura viva. Era essa a intenção ao criar esse personagem, que encanta Pampa Kampana?

Bem, eu sempre achei que a imigração era uma força cultural positiva, que enriquece o mundo no qual entra. Os amantes de Pampa são exemplos disso, sim. São cidadãos de povos colonizadores, mas não colonizam ninguém. São comerciantes e amantes, e o comércio e o amor são formas ricas de troca cultural.

‘Cidade da Vitória’ conta a história de uma dinastia que nasce de uma mulher. O livro todo parece mais interessado na perspectiva de figuras femininas que masculinas, quando a maior parte dos relatos históricos faz o contrário. O sr. sugere, com isso, uma nova maneira de olhar para o passado ou para o futuro?

Eu me impressionei com o fato de que as grandes narrativas épicas da Índia, o "Mahabharata" e o "Ramayana", são em grande parte histórias de meninos. Há personagens femininas importantes, mas em papéis coadjuvantes. Queria criar uma poeta mulher que escrevesse o seu próprio épico, que teria mulheres no cerne.

Em parte, fui inspirado pela força da presença feminina na história real do império de Vijayanagara [que existiu na região indiana e deu origem à narrativa], mas também fui impelido pelo meu desejo de criar uma visão diferente, que, sim, pode oferecer um outro ângulo de entrada para observar o passado e o presente.

Os críticos têm descrito seu livro como um retorno a seus primeiros trabalhos, já que transforma a história da Índia em literatura fantástica [como fez em ‘Os Filhos da Meia-Noite’, de 1981, seu romance mais premiado]. Esse tipo de comentário é pertinente?

Não penso muito em meus livros dessa forma. Cada um me parece o próximo passo necessário, não um olhar para trás. Mas é verdade que, depois de três romances muito ambientados nos Estados Unidos, queria deixar esse material quieto e ir para outro lugar; e outro lugar costuma significar a Índia para mim —a Índia e também a história.

O que o levou a escrever, há alguns meses, um tuíte condenando o que via como ‘censura absurda’ contra Roald Dahl quando sua editora anunciou mudanças em seus livros, devido ao que viam como linguagem ofensiva? O sr. disse também que Dahl era um ‘antissemita confesso’, mas que precisava ser defendido contra a ‘polícia da sensibilidade’.

Não podemos cair na armadilha de reescrever autores mortos porque, de outro modo, nada está a salvo. Se um livro não está à altura das nossas atitudes presentes, temos que escrever e ler outros livros. A censura não resolve nada.

Onde o sr. traça a linha entre criticar um livro e virar um censor?

Crítica é bom. Nenhum de nós está imune a ela. Reescrever não é.

O sr. sempre repeliu a maneira como sua biografia se coloca no meio da apreciação dos seus livros, dizendo que a literatura devia falar mais alto que sua vida. Parece um exercício mais difícil agora. Isso afeta seu processo criativo, suspeitar que os leitores vão olhar para seu trabalho pela lente da sua biografia?

Não afeta como eu escrevo. Pode afetar a maneira como as pessoas leem o que escrevo. Parece que afetou a sua leitura, por exemplo.

Mas, com sorte, os livros duram por muito tempo, e as notícias só são notícia por pouco. Então espero que, passado algum tempo, os livros sejam tratados como literatura, que é o que são. Tomara.

O sr. se incomoda que várias perguntas dessa entrevista tenham falado dos eventos trágicos de Chautauqua?

Sim.

Cidade da Vitória

  • Preço R$ 99,90 (384 págs.); R$ 44,90 (ebook)
  • Autoria Salman Rushdie
  • Editora Companhia das Letras
  • Tradução Paulo Henriques Britto

RAIO-X

Salman Rushdie, 76

Escritor nascido na Índia, se mudou na juventude para o Reino Unido, onde estudou no King's College de Cambridge e foi depois eleito para Royal Society of Literature. É autor de romances como 'Os Versos Satânicos', 'O Último Suspiro do Mouro', 'Joseph Anton', de inspiração autobiográfica, e 'Os Filhos da Meia-Noite', vencedor do prêmio Booker. Em 2023, foi eleito uma das cem pessoas mais influentes do ano pela revista Time.

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