Em Inhotim, obras de Luana Vitra e Abdias Nascimento pensam fim da exploração

Museu inaugura pavilhão da artista da Bienal de São Paulo e encerra circuito de mostras dedicadas ao pintor ativista

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Brumadinho (MG)

Em um galpão que anteriormente deu vida a uma marcenaria, grandes vasos brancos de cerâmica erguem-se sobre rochas terrosas e metálicas. De dentro deles, flechas de cobre ora despontam imponentes para cima, ora os transpassam apontando para direções diferentes, como uma rosa dos ventos.

Instalação 'Giro', da artista Luana Vitra, em Inhotim
Instalação 'Giro', da artista Luana Vitra, em Inhotim - Divulgação

Um azul tom anil –pigmento ligado à purificação espiritual no candomblé– tinge parte da instalação. Somado ao teto triangular do galpão e ao cheiro de terra, o ambiente parece quase sacro.

"Parece que eu fiz uma igreja", brinca Luana Vitra, artista que inaugurou em Inhotim, no sábado, 11, a instalação temporária "Giro", que ocupará por dois anos o pavilhão Marcenaria do maior museu a céu aberto da América Latina.

Afastada de causalidades esotéricas, a obra foi concebida por Vitra a partir da observação do desaparecimento da paisagem mineira com o rompimento da barragem em Brumadinho, em 2019.

Sobre as cerâmicas brancas, a artista desenhou os contornos delicados das montanhas e serras regionais que, pelos traços trêmulos e constantes, lembram gráficos de medições sísmicas.

"Essa é uma dor que Minas Gerais carrega. Artificialmente, seus relevos se tornam sulcos, e essa terra vai se tornando cheia de buracos e ausências, transportada o tempo inteiro para outros lugares do mundo", diz Vitra, referindo-se à mineração.

A artista, crescida na cidade industrial de Contagem, também compõe a 35ª Bienal de São Paulo com o trabalho "Pulmão da Mina", concebido a partir de um relato sobre como pessoas escravizadas levavam canários para o trabalho forçado em minas de ouro. O pássaro cantante reagia rapidamente à presença de gases tóxicos com o silêncio da morte, um aviso para que os trabalhadores escapassem da galeria.

Esmiuçar a degradação de vidas humanas e ecossistemas pela economia extrativista desenvolvida há séculos na região é o ponto de partida do trabalho de Vitra, que levou a Inhotim pedras de minério de ferro para compor a instalação.

"Pisamos em uma terra de ferro nessa região, e esse é um aspecto que sempre me orientou", diz. Já as flechas de cobre, segundo metal mais condutor existente, representam a energia do trabalho –e da própria terra– que, voltadas para cima, dão uma tonalidade positiva à instalação, diferente do sentimento fúnebre transmitido na Bienal.

A forma arredondada das cerâmicas parte de um estudo de Vitra sobre o giro enquanto movimento transformador da matéria, ligado à observação, na infância, do torno elétrico utilizado pelo pai marceneiro para harmonizar a madeira.

"Giro" inaugura com "Quarto Ato –Quilombismo", mostra que encerra o ciclo de exposições dedicadas à obra de Abdias Nascimento em Inhotim, fruto de uma parceria com o Museu de Arte Negra. Para a abertura, foi encenada, de forma inédita, "Sortilégio —Mistério Negro", peça escrita por Abdias Nascimento e censurada em 1950, agora levada ao palco de Inhotim por Adyr Assumpção.

O amplo espaço da galeria Mata foi dividido por quatro paredes ao centro que formam um "x" para representar o machado de Xangô, orixá da justiça, em uma mostra que percorre as realizações de Nascimento em diferentes áreas enquanto poeta, artista, dramaturgo e político.

Nas pinturas expostas, símbolos religiosos das tradições africanas são representados com cores vibrantes e fosforescentes, como é o caso de "Teogonia Afro-brasileira" e "O Vale de Exu". Apesar do uso de neons estar em alta entre os artistas pop das décadas de 1960 e 1970, Douglas de Freitas, curador da mostra, diz que para "entender a cor em sua obra, é preciso entender a religião."

"Abdias propunha um resgate da cultura africana, da religião que é também uma filosofia, um modo de operar a vida. Quando ele usa amarelo, por exemplo, ele evoca Oxum", diz.

Muitas obras presentes no "Quarto Ato –Quilombismo" são de outros artistas e fazem parte do acervo do Museu de Arte Negra, fundado por Abdias Nascimento junto ao Teatro Experimental do Negro, companhia na qual a atriz Léa Garcia, morta em agosto deste ano, iniciou sua carreira.

Exemplos são "Proteção" —escultura em madeira de um homem protegido por uma figura sobrenatural, de José Heitor da Silva— e "Cabeça de Animal" —obra assinada por Agnaldo Manoel dos Santos, que representa uma figura fantástica quase humana.

A gravura em metal de "El Velour de Oller en Nueva York", de Jorge Soto, e uma pintura em tons de rubro, de Leroy Clarke, também compõem a mostra. Segundo Freitas, o curador, a escolha das obras de autorias diversas está relacionada à vontade de transmitir a "atuação em redes" defendida por Abdias Nascimento.

"Abdias nunca chegou sozinho, mas sempre chegou trazendo aqueles que junto com ele trabalhavam", disse Eliza Larkin, viúva do artista e presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro), presente na abertura da mostra. Segundo ela, se estivesse vivo, Abdias lamentaria a morte de milhares de palestinos na Faixa de Gaza. "A luta contra o racismo é uma luta pela libertação de todos os povos que sofrem essas injustiças."

O viés político toma boa parte das obras de Nascimento na exposição, que em vida defendia a união dos povos africanos. O quarto e final ato do ciclo dedicado ao artista é, afinal, uma representação da tese elaborada por ele de que os quilombos —locais construídos a partir do trabalho comunitário e em prol de uma sociedade igualitária— representam a raiz da mobilização política da população negra frente à exploração.

A jornalista viajou a convite de Inhotim

Quarto Ato - O Quilombismo

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