Ernesto Neto tece 47 metros de crochê para nova obra monumental no Recife

Escultura do artista homenageia rio Capibaribe e ocupa todo o novo pavilhão expositivo da Oficina Francisco Brennand

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Obra 'CapiDançaBaribéNois', de Ernesto Neto, instalada na oficina Brennand, em Recife

Obra 'CapiDançaBaribéNois', de Ernesto Neto, instalada na oficina Brennand, no Recife Eduardo Ortega

Recife

Sob o sol de 31 graus , dezenas de pessoas dançam em círculo ao ritmo da bateria de maracatu em uma praça no centro do Recife.

"Uma cerveja antes do almoço é muito bom para ficar pensando melhor", elas cantam, repetindo o verso que imortalizou Chico Science no imaginário da cidade. No meio da ciranda, um messias tira metros e mais metros de tecido de dentro de um imenso saco de pano colocado no chão.

Obra de Ernesto Neto atravessa o rio Capibaribe para ser exposta na Oficina Brennand - Eduardo Ortega/Divulgação

Ernesto Neto, vestido de branco, sandália de couro estilo Jesus Cristo, passa aos poucos o interminável tecido para os integrantes daquela roda viva. São 47 metros de chita e "voile" crochetados em forma de trama que, quando esticada ao ser segurada por todos, lembra uma cobra em movimento.

"A serpente é a linha. E a linha, meu amigo, é tudo na vida. É o caminho, o andar, a linha do pensamento, a raiz de uma árvore, a linha do desenho. É a própria linha do crochê", diz o artista.

Conhecido no circuito internacional de museus e bienais por suas esculturas têxteis de grandes proporções que envolvem a participação do público, Neto inaugura neste sábado sua nova obra, "CapiDançaBaribéNois", uma instalação que ocupa a totalidade do novo pavilhão expositivo da Oficina Francisco Brennand, no Recife, e da qual a imensa trama de crochê faz parte —ela fica suspensa, recheada com folhas secas.

Antes de ser armada, a rede saiu do Marco Zero, o ponto onde a capital pernambucana começou, e atravessou a cidade de barco pelo rio Capibaribe. Uma bandeira hasteada numa vara de bambu na embarcação dizia "rios limpos, amor, vida e equidade social". Depois de percorrer vinte quilômetros durante uma hora e meia, o barco aportou às margens da Oficina Brennand.

Lá, a trama foi novamente desenrolada pelo artista e recepcionada pelo corpo de baile com maracatu e rezas, para ser finalmente carregada em procissão até o pavilhão onde é mostrada.

No centro do espaço expositivo, Neto tirou uma lajota "para fazer uma conexão da galeria com a terra mãe", ele diz. Ali, vai plantar, na cerimônia de abertura, uma muda de árvore que colheu na nascente do rio Capibaribe. Quando a obra for desmontada, a planta será transportada para os jardins da Oficina Brennand.

"Isso aqui é uma grande festa. As festas são uma coisa muito importante na nossa sociedade e nas sociedades indígenas e afro", afirma o artista, copo de cerveja na mão, ao comentar os rituais que antecederam a montagem da obra, que ele chama de "escultura-procissão".

Celebrações são ritos coletivos, e a junção de pessoas interessa ao artista, seja nas rodas de batucada semanais das quais ele participa na orla carioca, seja em seu trabalho.

Ele aprendeu a fazer crochê na casa de sua vó, no início dos anos 1990, depois de adulto e já com as primeiras exposições em andamento. Era um ambiente de coletividade feminina onde também se pintava porcelana e se cozinhava.

A partir daquele momento, sua obra se voltou para as formas orgânicas —Neto passou a fazer grandes esculturas de tecidos translúcidos nas quais o público podia entrar. Ele também começou a pendurar nos espaços expositivos casulos com ervas aromáticas dentro, para estimular os sentidos dos visitantes.

"O pintor tem uma separação da obra através do pincel e da tinta. O escultor é aquele que toca na obra. A mão é mais profunda que o olho nessa coisa de sentir. Quando a gente toca, a gente já se envolve. Envolver as pessoas é parte disso", diz o artista, acrescentando que sua obra é coletiva desde a feitura a várias mãos no ateliê.

Aos 59 anos e com uma prolífica carreira internacional que inclui passagens na Bienal de Veneza e uma obra adquirida pela MoMA, o Museu de Arte Moderna de Nova York, Neto se coloca sem falsa modéstia numa linhagem de artistas que testaram os limites da escultura, como os neoconcretos Lygia Clark e Helio Oiticica —que também envolviam o público em algumas de suas obras— e Tunga. Ele conta também ter aprendido muito com José Resende.

"CapiDançaBaribéNois" é a segunda obra executada pelo escultor na Oficina Brennand mas a primeira exposta no local —a outra foi uma imensa bola de cerâmica no formato do globo terrestre que ele exibiu ano passado no deserto do Qatar.

Como tudo é carregado de simbolismo para o artista, a data em que a visitação do novo trabalho abre para o público, 11 de novembro, marca os 52 anos da fundação da oficina, uma antiga olaria formada por um conjunto de galpões numa reserva florestal que serviu de moradia e ateliê para Francisco Brennand.

Ao referenciar o rio Capibaribe no nome da instalação, o artista faz uma homenagem às aguas que cortam Recife. Clarissa Diniz, uma das responsáveis por conceber a ideia da obra e ajudar em sua realização, conta que o rio trouxe uma tessitura social ao trabalho por envolver as comunidades que habitam as suas margens.

Segundo ela, os barqueiros se recusavam a fazer todo o percurso desejado pelo artista, dado que um trecho passa pela Ilha do Bananal, uma região de tráfico de drogas.

"Foi o limite de entender se o rio é ou não navegável pelos usos e pela sociedades que estão no seu entorno. Quando tem tráfico e tiroteio não dá. Tem corpos boiando no rio, esse tipo de coisa", afirma Diniz.

Em vez de desistir da ideia, e partindo do princípio de coletividade que guia sua poética, Neto e sua equipe envolveram a comunidade na obra, de modo que foi possível atravessar de barco as águas antes proibidas. Mas não só.

O artista também convidou grafiteiros locais —que encontrou a partir das negociações para a travessia—, para compartilharem o espaço expositivo, numa atitude inédita em seu trabalho. Na parede do fundo do pavilhão, Libélula pintou uma representação dos mangues. Na parede lateral, o coletivo Iputinga Sociocultural desenhou as águas do Capibaribe, perto das quais a cordelista Sula Patrício, do interior de Pernambuco, escreveu versos para o rio.

"O projeto abraçou esse rio social, que se transformou em presença na obra", diz Diniz.

Ernesto Neto - CapiDançaBaribéNois

O repórter viajou a convite da Oficina Francisco Brennand

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.