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Flip viveu caos com apagão e enfrentou menor interesse do público pelos debates

Curadoras afirmam ter buscado o dissenso e dizem que mesas esgotadas não são sinônimo de sucesso

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A Flip e o breu Zanone Fraissat/ Folhapress

Paraty

É possível que esta seja lembrada como a Flip do apagão. As intempéries climáticas —calor tórrido, chuva implacável e blecaute distópico— ofuscaram uma programação que escalou menos estrelas e contava com a boa vontade do público para descobrir escritores novos.

A Flip e o breu - Zanone Fraissat/ Folhapress

Ainda que diversas mesas tenham atingido metas ambiciosas e funcionado bem, nenhuma foi tão inesquecível a ponto de superar a noite traumática em que Paraty se apagou, na quinta.

Imagina se turistas e o mundinho literário de todo o país fossem forçados a voltar para casa, derrotados pela impossibilidade de continuar sem ventilador para aplacar a quentura, wi-fi para se conectar, geladeira nos restaurantes e —cruz-credo— água bombeada nas caixas?

Isso tem a ver com a data da festa deste ano, atípica e desde o início reconhecida como longe do ideal pela organização. Julho sempre foi o mês tradicional, mas, como reflexo da pandemia, o evento ficou perto do verão em 2022 e agora.

Em entrevista à imprensa neste domingo, após o encerramento, o diretor artístico Mauro Munhoz prometeu a festa do próximo ano para setembro. Foi por causa da agenda de novembro, afinal, que foi difícil trazer ao Brasil autores estrangeiros que ainda estavam comprometidos com o fim do ano letivo ou outras questões profissionais quase no último mês do ano.

Isso colaborou para que os nomes da programação fossem encarados como menos vistosos pelo público —a reportagem ouviu de diversos visitantes, escritores e editores ao longo do festival que o interesse em assistir às mesas, neste ano, era mais restrito.

Enquanto atrações paralelas chegavam a gerar aglomerações apelidadas de "Taylor Swift" para ver Conceição Evaristo ou Silvia Federici, as mesas principais muitas vezes não lotaram, em especial no sábado, que costumava ser um dia muito disputado.

"Uma mesa dar certo não tem necessariamente a ver com esgotar ou não", disse a professora Milena Britto, curadora desta edição com a editora Fernanda Bastos. "Pode dar certo ao afetar uma só pessoa. O certo é que não houve nada clichê. Até quem não gostou teve que pensar por quê."

"Nós sabíamos que seria uma Flip de dissenso", disse Bastos. "Trabalhamos com várias linguagens descredibilizadas, que não passam pelo sistema de legitimação tradicional. Num contexto de racismo estrutural, duas mulheres negras em posto de comando, e dizendo mais ‘não’ do que ‘sim’, é um grande avanço."

"Muitas outras instituições no mercado editorial, nos jornais, não avançaram tanto nisso quanto a Flip fez", continuou a editora, lembrando que a homenageada desta edição, Pagu, foi uma figura odiada em sua época. "As pessoas estão acostumadas a sempre ver os mesmos discursos de homens brancos. Quisemos trazer a Flip para o nosso século."

Bastos e Britto não estarão na curadoria da próxima Flip, uma decisão que Munhoz anunciou como o fim natural de um ciclo, lembrando que o evento é como uma casa que troca de moradores com frequência e coerência.

Apesar de a festa ter começado num calor arrebatador, sua temperatura política estava mais fria. Se assuntos prementes como as desigualdades estruturais de raça e gênero estavam em toda a parte, foram tímidas as menções diretas a crises que dominam o noticiário —as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza, só para dar dois exemplos.

É verdade que é impossível para a curadoria pensar em uma programação presa a um noticiário, mas convidados traziam, em edições passadas, debates quentes.

É algo que depende das mediações, parte delas problemática neste ano. A escritora Monique Roffey, de Trinidad e Tobago, é cofundadora do Writers Rebel, parte do Extinction Rebellion, movimento de resistência ao cataclisma climático. O tema não foi desenvolvido na mesa dela.

Muitos entrevistadores se dedicaram a elaborar perguntas difíceis de entender até para alguns convidados —incorriam numa espécie de "síndrome do comente", ou seja, faziam introduções tortuosas e, em vez de propor uma questão direta, pediam que o convidado discorresse sobre aquilo tudo.

Já no primeiro debate de quinta, uma conversa entre a crítica cultural Flora Süssekind e a dramaturga Marion Aubert empacou diante de uma mediação confusa. Aubert chegou a dizer ao menos duas vezes que não sabia se tinha entendido.

Um dos traços da Flip sempre foi ser o palco de um atrito —com frequência produtivo— entre debates acadêmicos e o aspecto popular da festa, seu lado de espetáculo. É daí que vinham discussões profundas, mas acessíveis, e apresentações memoráveis. Neste ano, o terreno do abstrato foi muito presente.

As mudanças revelam uma Flip com convicção de crescer e se transformar, com a consciência de que isso traz conflitos.

"Assumimos a curadoria com o compromisso de nunca nos adequarmos completamente", disse Milena Britto. Se antes público e imprensa se dedicavam a contabilizar autores negros e mulheres no elenco, isso hoje não faz nem sentido.

A diversidade está consolidada e virou pressuposto. O contraste com a primeira Flip é evidente. Há 20 anos, os convidados eram medalhões —mas o conjunto era formado sobretudo por homens brancos, entre eles os escritores Eric Hobsbawm e Julian Barnes.

Esta edição também soube reconhecer a tradução como um ofício literário. Muitos convidados estrangeiros prestaram homenagens a seus tradutores brasileiros —afinal, é esse trabalho que permite a uma festa literária ser de fato internacional.

O mesmo vale para o destaque que as curadoras resolveram dar para a poesia, um gênero que amarga tiragens pequenas no mercado editorial. E o evento teve sucesso ao mostrar como a literatura pode ir além da palavra escrita, como atestam as participações vibrantes de Leda Maria Martins, Glicéria Tupinambá e Luiza Romão.

Foi bem-sucedida a celebração a Augusto de Campos. A mesa de homenagem ao autor conseguiu unir profundidade e didatismo ao mostrar ao público como ele é um nome incontornável da cultura brasileira.

Bom lembrar ainda a volta do show de abertura feito por um grande nome da música brasileira, com Adriana Calcanhotto. Afinal, Paraty também é uma festa.

(Anna Virginia Balloussier, Maurício Meireles, Naief Haddad, Patrícia Campos Mello e Walter Porto)

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