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'Monster' de Kore-eda faz quebra-cabeça afetuoso em meio a caos narrativo

Premiado pelo roteiro em Cannes, diretor célebre pelo drama familiar costura suspense a partir de três pontos de vista

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Monster

  • Quando Estreia nesta quinta (30) nos cinemas
  • Classificação Não informada
  • Elenco Sakura Andô, Eita Nagayama, Soya Kurokawa
  • Produção Japão, 2023
  • Direção Hirokazu Kore-eda

Três pontos de vista redefinem "Monster", de Hirokazu Kore-eda, ao longo da narrativa. O artifício é manjado, e célebre por outro filme japonês, "Rashomon", de Akira Kurosawa. Mas aqui, ainda que as diferentes histórias sejam complementares, é difícil entender para onde ela caminha.

A cada passo, o filme tromba no thriller, no terror e no melodrama, num estranhamento que lembra o mundo absurdo de Kafka, com pitadas do tradicional drama familiar de Kore-eda.

Cena do filme 'Monster', de Hirokazu Kore-eda
Cena do filme 'Monster', de Hirokazu Kore-eda - Divulgação

Se tudo parece fora de lugar para um filme do diretor, que levou a Palma de Ouro por "Assunto de Família", em 2018, muito se deve ao roteiro de Yuji Sakamoto —e foi o que deu o prêmio ao longa neste ano em Cannes.

É raro ver um filme em que Kore-eda esteja apenas na cadeira de diretor, não fazia isso desde 1995, com "A Luz da Ilusão". Talvez tenha notado suas deficiências nesse campo quando saiu da zona de conforto em "O Terceiro Assassinato", de 2017, com uma trama detetivesca à Hitchcock.

É possível entrever o mestre do suspense, com um bom toque de maneirismo, também neste "Monster", centrado na relação entre dois adolescentes, Minato e Yori, colegas de sala, que começam a ter comportamentos estranhos no dia a dia. Só entenderemos ao fim o que há entre eles, se são amigos ou desafetos, como o bullying no colégio afeta o comportamento deles.

Primeiro, veremos o mundo pelos olhos da mãe de Minato, vivida por Sakura Ando, espantada pelo filho chegar em casa sujo, machucado, mais quieto que o comum. Começa a dizer que seu cérebro foi trocado pelo de um porco. A horas tantas, acusa um professor pelos maus tratos. Sabemos que ela é uma jovem viúva, que trabalha e cuida sozinha do menino.

Ela vai ao colégio e todos os funcionários, roboticamente, dizem que a situação está sendo apurada e agradecem os comentários diante de uma mãe em choque. Depois, o tal professor será forçado a se curvar e pedir desculpas, mas sem qualquer explicação sobre o caso. Será mesmo culpado? O que essa mãe não vê?

Pelo humor, o filme evidencia uma faceta particular ao Japão, suas tradições e como seu teatro social escondem feridas. A partir daí, o espectador será confrontado com suas impressões daquele mundo e de suas regras, até chegar num comentário universal sobre como encaramos o que é estranho, o outro. Ou ainda, os monstros na nossa frente, que não raro espelham o que há dentro nós.

Se "Rashomon" era o elogio da mentira, "Monster" mira a verdade para além das aparências. "Não importa o que de fato aconteceu", diz uma personagem.

O modo de vida japonês, parece indicar o diretor, tem muito do não dito, e cada personagem, por mais monstruoso que pareça, esconde algo capaz de reorganizar a história. Todos, de certa forma, têm um arco de redenção —o que é bem típico de Kore-eda.

A diretora do colégio, papel da veterana Yuko Tanaka, por exemplo, vai de uma cínica a uma mulher amargurada e tenra quando descobrimos a culpa que carrega. Ela é um dos elos para a segunda parte, quando seguimos o professor denunciado, papel de Eita Nagayama.

Mas a história não segue do mesmo ponto. Se confunde o espectador menos atento, também é uma saudável recusa ao didatismo. Se a primeira parte começava com um incêndio numa boate da pequena cidade, essa vai para a intimidade do docente e suas dificuldades com as mulheres e o dinheiro.

Nesse sentido, em vez de esmiuçar um acontecimento a partir de vários narradores, "Monster" se lança numa vertigem de personagens e minúcias (o som de um trombone, um sapato, uma tempestade, o cenário de um trem em ruínas etc.) que se desdobram num complexo mosaico daquele Japão.

Kore-eda foge da linearidade e põe sua direção competente a serviço de um roteiro caótico, mas singular na sua carreira. É um dos melhores trabalhos dele nos últimos dez anos.

Pelo final sentimental, após um terceiro ato que corre para amarrar as pontas, "Monster" rendeu comparações ao "Close", de Lukas Dhont. Mas se o cinema importa para além das temáticas, o filme de Kore-eda mostra-se oposto aos clichês de festival que o filme belga abraça à moda dos Dardenne.

Além de tudo, "Monster" tem a última trilha de cinema de Ryuichi Sakamoto, morto em abril, com composições originais ao lado de faixas do álbum "12", seu último disco lançado em vida. É a sombra que envolve tudo com a luz da melancolia.

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