Família é tanto fardo como redenção, diz cineasta japonês que venceu Cannes

'Assunto de Família', novo filme de Hirokazu Kore-eda, é um dos destaques da Mostra Internacional de SP

Walter Porto

[RESUMO] Vencedor em Cannes e destaque na Mostra de Cinema de São Paulo, que começa na quinta (18), Hirokazu Kore-eda especializou-se em investigar relações familiares. Em entrevista, o cineasta fala sobre esse tema, que considera fardo e redenção.

 

Como coroação de uma carreira de reconhecimento internacional, “Assunto de Família” rendeu a Hirokazu Kore-eda seu troféu mais prestigioso até agora: a Palma de Ouro do Festival de Cannes deste ano.

O diretor japonês de 56 anos já competira outras quatro vezes pela distinção máxima do festival francês e levou o prêmio do júri em 2013 por “Pais e Filhos” —obra que, assim como esta mais recente, tateia ao redor de seu mais recorrente interesse: o cotidiano de famílias quebradas.

Seus personagens, não raro figuras falhas e traumatizadas, se veem atormentados pelo vácuo de familiares ausentes ou pelo peso de relações íntimas que mais parecem âncoras.

“Famílias são ao mesmo tempo fardo e redenção”, afirma Kore-eda à Folha. “Estou sempre tentando mostrar ambos os lados, mas não posso nem vou apresentar resoluções no meu trabalho. Eu sigo em busca delas.”

A cada enredo, Kore-eda parece adicionar uma nova peça em sua investigação perene sobre o que constitui uma família, cada pedaço singelo posto de um ângulo diferente. É frequente que a busca se dê através da ausência, seja de pais negligentes (em “Nossa Irmã Mais Nova”, de 2015), seja de um filho perdido (“Andando”, de 2008), seja de um marido morto (“A Luz da Ilusão”, sua estreia na ficção em 1995). Observa-se o que aqueles que restam, cheios de mágoa e ressentimento, procuram fazer com os detritos.

Em “Assunto de Família”, ele se aproxima do tema não pelo destroçamento, mas pela construção. Seu olhar centra-se em um núcleo familiar sólido (mesmo que atípico) que traz para dentro de casa uma menina pequena com todos os sinais de abuso parental.

Como sugerido de forma clara pelo título original —que se traduz literalmente por “família de ladrões”—, o grupo que protagoniza a obra, composto de duas mulheres, uma idosa, um homem e duas crianças, vive à margem da sociedade e recorre a pequenos delitos para sobreviver.

Quanto mais se avança na trama, mais fica claro que as transgressões não são apenas meio de subsistência, mas também um componente essencial das relações entre as pessoas que convivem sob aquele teto. A partir daí enseja-se uma reflexão sobre o que há de verdadeiro numa família artificial.

O longa avança em abordagem semelhante à de “Pais e Filhos”, que retrata a descoberta tardia, por dois casais, de que seus bebês haviam sido trocados no hospital. Fica evidente que as ligações dos homens e das mulheres com seus filhos falsos soam mais autênticas do que com os legítimos. De maneira delicada, o filme se pergunta se há sentido em desfazer a troca —mas parece interessado, sobretudo, nos efeitos que essa questão produz nos pais.

O caso é mais extremo em “Ninguém Pode Saber” (2004), inspirado num caso real de crianças abandonadas à própria sorte pela mãe em um apartamento. A construção da estrutura familiar entre os meninos é rudimentar, mas não por isso desprovida de força. Parece fascinar o cineasta o momento em que indivíduos frágeis decidem se erguer à altura da situação e tomar responsabilidade, nem sempre com sucesso —o que não invalida o movimento.

“Talvez eu esteja interessado no processo em que crianças se tornam adultos”, diz Kore-eda. “Em ‘Ninguém Pode Saber’, é cruel que isso aconteça quando elas perdem a esperança no futuro. E para o irmão mais velho em ‘O Que Eu Mais Desejo’ [2011], é quando ele perde o sentimento todo-poderoso de que pode mudar o mundo conforme queira.”

“Já em ‘Assunto de Família’, acho que o garoto vira adulto quando começa a ter o sentimento de culpa e de justiça, e quando passa a ver seu pai não mais como algo absoluto, mas uma pessoa de pouca importância.”

Essas fissuras, na lógica do cineasta, servem para que seus protagonistas fortaleçam a si mesmos ou reforcem outras pontes mais fortes —ou ao menos levantem pinguelas suficientes para atravessar algo tão quebradiço quanto a vida.

Desde seu poderoso “A Luz da Ilusão”, os efeitos da perda são preocupação central no cinema de Kore-eda. O drama traz uma mulher tentando catar os cacos de sua vida após o aparente suicídio do marido. 

A câmera parada, sem medo de recorrer a planos de longos segundos para reforçar o peso da solidão repentina, daria o tom para uma estética constante em boa parte da carreira do cineasta. Vigiando com distância e paciência, permite-se encontrar a naturalidade da transformação da dor em riso, e de volta em dor.

Seu filme seguinte, “Depois da Vida” (1998), consolidou-o como artista de renome internacional, ao imaginar uma espécie de purgatório onde os recém-mortos deviam escolher uma só lembrança para ficar com eles durante toda a eternidade. 

Apesar de ficcional, a obra traz trechos de entrevistas com pessoas reais rememorando episódios de sua vida —uma alusão ao início de carreira de Kore-eda como documentarista— como se estivessem inseridas no universo do filme. A diferença entre o que é real e o que é encenado é imperceptível.

Ainda que seja uma rara incursão do diretor na fantasia —algo que repetiria em “Boneca Inflável” (2009), por exemplo—, “Depois da Vida” não deixa de dar centralidade às ligações afetivas ao revelar como as memórias íntimas são sempre as mais preciosas, não importa quão rico tenha sido o desencarnado.

Há desvios do cineasta para terrenos de outros gêneros —como o filme de samurai “Hana” (2006) ou o suspense de tribunal “O Terceiro Assassinato” (2017)—, mas são apenas um punhado dentro de uma filmografia prolífica. Costumam ser descartados em prol dos dramas familiares (ou melodramas, no vocabulário dos detratores) que se tornaram sua especialidade absoluta.

O diretor rechaça a ideia comum de que procuraria espelhar suas próprias angústias domésticas na tela. Mas reconhece que algumas obras são mais autobiográficas, como “Andando” e “Depois da Tempestade” (2016), e identifica suas experiências pessoais “refletidas, por exemplo, na inquietação do garoto de ‘Ninguém Pode Saber’ de que sua mãe talvez não volte para casa, e, em ‘Assunto de Família’, na decepção quanto ao pai ser um fracasso social”.

“Assunto de Família” é um dos destaques da edição deste ano da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que exibe o trabalho de Kore-eda com frequência e aproveitou para distingui-lo também com o prêmio Humanidade, dedicado àqueles que, através da arte, avançam por “uma melhor compreensão da coexistência entre as pessoas”, segundo a diretora Renata de Almeida.

Parece adequado a um cineasta cujo trabalho é exaustivamente descrito como humanista e que mostra-se imparcial até na observação de personagens que, pressionados por circunstâncias práticas ou emocionais difíceis, resvalam em comportamentos pouco dignos.

É improvável, por exemplo, que adjetivos como “ético” ou “honesto” venham à cabeça para qualificar qualquer pessoa do núcleo principal de “Assunto de Família”; a abordagem de Kore-eda, contudo, transborda compaixão.

“Na minha opinião, é arrogante da parte de um diretor brincar de deus e julgar seus personagens, dizendo ‘você está fazendo uma coisa correta, então vai ser feliz’ ou ‘você não está fazendo coisas corretas, então vai ser infeliz’”, afirma o cineasta.

Em uma cena de seu filme mais recente, as duas crianças protagonistas tentam escapar de uma loja de conveniência após roubar um doce. O dono do lugar, notando o movimento, vai até a porta e dá dois canudos açucarados a eles. É uma sequência simbólica da posição do diretor frente a seus personagens: o reconhecimento da falta está lá, mas a empatia fala mais alto. 

No agradecimento pela vitória em Cannes, em maio, Kore-eda disse cultivar a esperança de que, graças ao cinema, “pessoas que normalmente se enfrentam possam se reunir”. Seriam palavras banais na boca da maioria dos artistas. Mas não para um que dedicou sua obra a encontrar afeto em meio à terra arrasada. 


Walter Porto é repórter da Ilustríssima.

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