Kore-eda ecoa 'Close' ao levar bullying e sentimentalismo a Cannes em 'Monster'

Novo filme do diretor japonês é centrado em duas crianças e funciona como espécie de quebra-cabeça, cheio de fragmentos

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Cannes (França)

Afeito aos dramas familiares quase novelescos, Hirokazu Kore-eda criou para si uma marca própria. Seus filmes podem soar repetitivos, mas o japonês sempre mostra domínio sobre o tema e, por essa condução ímpar dos impasses que ocorrem no seio familiar, é hoje um dos mais celebrados nomes do circuito de festivais.

Cena do filme "Monster", de Hirokazu Kore-eda, exibido no Festival de Cannes de 2023
Cena do filme "Monster", de Hirokazu Kore-eda, exibido no Festival de Cannes de 2023 - Divulgação

É curioso, portanto, que o filme que ele exibe agora na competição principal de Cannes tenha a unidade familiar não exatamente no cerne. Ela e suas questões estão lá, mas dividindo espaço com corredores escolares e o mundo de inocência que as duas crianças protagonistas imaginam para si.

Com trama mantida sob absoluto sigilo até a estreia e um título que pode enganar, "Monstro", numa tradução literal, subverte as expectativas do público, descascando suas várias e complexas camadas aos poucos.

Só na metade do longa criamos o paralelo inevitável com "Close", que rendeu o grande prêmio a Lukas Dhont no Festival de Cannes do ano passado. Ambos acompanham a amizade de dois garotos em idade escolar e ambos abordam bullying e saúde mental sem abrir mão do sentimentalismo.

Mas não se engane, os dois filmes são muito diferentes. Eles podem até se aproximar nos temas, mas divergem totalmente na narrativa –o choque cultural entre a sociedade japonesa e a belga talvez tenha sua parcela de culpa.

E, assim como "Close", é difícil falar de "Monster" sem entregar a trama. Boa parte da graça está em juntar os fragmentos da história aos poucos, como num thriller. Por isso, Kore-eda passa por sua narrativa três vezes, sob pontos de vista de diferentes personagens.

Para quem ainda não viu, basta dizer que o filme começa acompanhando uma mãe preocupada com o comportamento do filho, que volta da escola com muitos machucados e poucas palavras. Ela vai atrás do professor do garoto, e este, enquanto isso, vai se fechando cada vez mais, em contraste com um colega de classe falante, alegre e sempre simpático.

Esperamos a todo instante o filme enveredar para o nunca anunciado, mas presumido gênero do horror sobrenatural. Há horror na trama, grave, embora mais discreto e menos literal. Parte dele vem de um sistema educacional falido, que assombra pais, alunos e professores, e de uma sociedade que, como um todo, falhou em absorver erros e imperfeições, diferenças e singularidades.

"Monster" ensaia até mesmo um comentário sobre a onda de perseguição a professores e a crise de ataques a escolas que contaminaram os Estados Unidos e parecem contaminar também o Brasil, escavando seus personagens em busca das razões para o comportamento agressivo e o isolamento social. A trama não chega a consumar essa ideia, mas fala de maneira dura sobre bullying e suas consequências.

Além das crianças, os adultos do filme também sofrem com a saúde mental abalada. Não falta drama na vida das figuras criadas por Kore-eda, mas ele aborda a violência com seu jeito sutil e delicado de narrar histórias. Tanto que o desfecho soa manipulador, mas entrega nada mais e nada menos do que se espera do cineasta japonês.

"Monster" tem cacife para dar a Kore-eda uma segunda Palma de Ouro, depois de conquistar uma pelo belíssimo "Assunto de Família" e um prêmio do júri pelo também sensível "Pais e Filhos" —e, no ano passado, levar o troféu ecumênico por "Broker".

Mas isso parece improvável diante de um júri comandado por um cineasta tão avesso ao melodrama quanto Ruben Östlund. Onde um vê oportunidade para a sutileza e a emoção, o outro vê para o excesso e a acidez. É no mínimo incompatível.

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