Descrição de chapéu

Ataque à 'Mona Lisa' mostra que destruição é sexy, mesmo a simbólica

Ativistas como os que arremessaram sopa no quadro poderiam encontrar outra maneira de amarrar uma melancia no pescoço

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Todos querem os seus 15 minutos de fama, ou segundos, na era do TikTok. Os campeões no pódio tóxico das redes sociais deste final de semana foram as duas ativistas que arremessaram uma sopa de cor alaranjada contra a "Mona Lisa" no Museu do Louvre, em Paris.

A obra-prima de Leonardo Da Vinci, ao que tudo indica, saiu ilesa, já que fica pendurada atrás de uma pele de vidro blindado. Mas o dano não é físico. É uma questão de imagem, e imagem é tudo num mundo marcado pela desatenção, o deslizar frenético de dedos sobre telas atrás do último momento chocante a viralizar.

Ativistas jogam sopa sobre a "Mona Lisa" - David Cantiniaux/AFP

O ato deste fim de semana no maior museu do mundo era um protesto contra problemas estruturais enfrentados pelos agricultores franceses, um movimento que se alastra pela Europa com tratores do campo avançando também sobre Berlim e outras cidades.

Não importa a questão de ordem do dia. Longe das ruas e dentro dos museus, já jogaram sopa de tomate sobre os girassóis de Van Gogh, sopa de ervilha sobre outra tela do holandês, tinta preta sobre um quadro de Klimt. Já grudaram as mãos numa pintura de Goya, na "Primavera" de Botticelli e na "Última Ceia" de Da Vinci. Rabiscaram sobre o vidro das latas de Campbell’s de Warhol —seria pleonástico usar sopa aqui também?

Os motivos de cada ataque variam. Vão de problemas com museus financiados pela indústria do petróleo e dos combustíveis fósseis, protestos pelo descaso em relação às mudanças climáticas e agora a questão espinhosa dos agricultores europeus pressionados por um mercado em chamas, agravado por guerras em curso pelo globo.

Não parece estar no horizonte um cessar-fogo entre israelenses e palestinos que se trucidam, da mesma forma que russos e ucranianos. Também estamos longe de ver cessar o ataque a obras de arte em museus pelo mundo, seja qual for o motivo da vez.

E o motivo por trás dessa estratégia não varia, é o denominador comum. É que a destruição, mesmo que simbólica, é sexy, quase pornográfica. Não conseguimos desgrudar os olhos dela.

Muito longe de Paris, já vimos os atos iconoclastas contra ruínas históricas pelas mãos do Estado Islâmico e, bem perto de casa, vimos na nossa capital, em looping, as imagens dos ataques golpistas de 8 de janeiro do ano passado, o relógio dourado atirado ao chão, a tela de Di Cavalcanti apunhalada, as cadeiras do Supremo, desenho de Jorge Zalszupin, arremessadas ao relento.

Questão de sorte ou precaução, hoje mais por cautela do que por acidente, os grandes museus do mundo já têm suas obras-primas salvaguardadas por vidro, acrílico ou outras barreiras de proteção. Ativistas também já disseram que não têm o objetivo de destruir o patrimônio artístico, mas querem chamar a atenção. Justo, muito justo, mas podiam encontrar outra maneira de amarrar uma melancia no pescoço.

Nada contra a causa que se queira mostrar e chamar a atenção de nós, da mídia, da população em geral, mas o ataque a obras de arte vitimiza aquilo que todos temos de mais humano, e em comum, a expressão livre que provoca, seduz, encanta ou inspira debates, faz mais perguntas do que dá respostas, aquilo de mais saudável que podemos ter na era de dedos nervosos e déficit de atenção.

Transformar os museus em campos de batalha, espaços de tensão, não é o caminho para a troca de ideias, para o debate e a denúncia. Obras de arte sozinhas, em especial aquelas que sobreviveram séculos ou milênios como testemunhos dos nossos delírios e nossas angústias, testemunham e denunciam por sua vez outros males e outras dores.

Os ativistas que põem as suas dores acima daquelas dos outros, acima do tortuoso caminho da expressão atravessado por esses artistas, são tão insensíveis quanto os monstros que querem denunciar.

Da Vinci, quando retratou a sua Gioconda e fez do quadro o máximo manifesto da tradução plástica do que é ser humano diante de uma natureza impossível de capturar em todo o seu esplendor, não é o culpado pelos problemas dos agricultores franceses. Nem Goya, nem Van Gogh, nem Di Cavalcanti, nem Warhol.

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