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Como cinema de André Novais Oliveira virou um dos maiores do Brasil

Diretor mineiro dos inventivos 'Fantasmas' e do novo 'O Dia que Te Conheci' é o homenageado na Mostra de Tiradentes

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Inácio Araujo

Crítico de cinema da Folha

São Paulo

Desde o espanto que foi "Fantasmas", de 2010, era possível prever que o estreante André Novais Oliveira —agora homenageado na Mostra de Cinema de Tiradentes que se inicia nesta sexta-feira (19)—, logo se tornaria um dos principais cineastas brasileiros. O filme juntava originalidade, segurança, audácia, espírito inovador e capacidade de depuração.

O diretor André Novais Oliveira - Leo Lara/Universo Produção

O filme era feito em um único plano, quase todo estático, sem nenhum personagem em cena: apenas dois amigos conversando em off sobre a imagem de uma esquina razoavelmente movimentada, onde se destacava um posto de gasolina.

Apenas no final, a surpresa —o primeiro amigo está ali apenas esperando a passagem de carro de uma ex-namorada. Pelo trajeto ela é forçada a parar numa esquina; acontece então um movimento em zoom, que busca captá-la.

O segundo amigo fica indignado. Percebemos então que o primeiro amigo está filmando a passagem da garota, e que fixará sua paixão em imagens; talvez assim se salve —é o que acredita, em todo caso.

"Fantasmas" já anunciava o que viria depois: um mínimo de expressão e o máximo de atenção às coisas. Os demais curtas confirmariam essa tendência.

Em "Pouco Mais de um Mês", de 2013, o diretor pela primeira vez se torna personagem, o que faria também com seus familiares a partir de então.

O filme mostra cenas de um amanhecer dos namorados André e Élida —a conversa ao despertar, a formação de um efeito de câmara escura no quarto, o café da manhã quase silencioso, de palavras poucas e vagas.

No momento seguinte, os dois aparecem num ponto de ônibus, à espera da condução que André vai tomar. Algum tempo depois, ele diz que sente algo estranho na companheira, que lhe parece um tanto arredia. Ela responde que é assim mesmo. O ônibus passa. Os dois se beijam. Corte para a carroceria do ônibus, que impede os personagens de serem vistos. O ônibus se move; o ponto reaparece, mas agora não há ninguém nele.

Perguntamos o que aconteceu aos namorados: ambos embarcaram? Ele foi e ela saiu do lugar? Por que o ponto está vazio? A dúvida lembra um pouco certos filmes de Kiarostami, assim como os diálogos banais lembram Ozu.

O cineasta abandona a trilha dos filmes sem personagem, que começou magnificamente com "Fantasmas". Doravante a família, os amigos, ele mesmo serão personagens de suas histórias.

Assim, "Quintal", de 2015, mostrará um casal, Maria José e Norberto, vivendo na mesma casa, mas com pouco em comum. Enquanto Maria José resiste a ser levada por uma ventania fortíssima, Norberto afunda-se nos filmes pornô.

Mais tarde, veremos Norberto defendendo seu mestrado —em filmes pornô—, observado a distância por Maria José. Da comemoração que se segue, no entanto, ela estará ausente: ele comemora dando um salto no ar e agitando o braço, à maneira de Pelé.

Esse divórcio do casal será trabalhado mais detidamente em "Ela Volta na Quinta", primeiro longa de Novais. Em "Temporada", seu segundo longa, ele se mostra bem mais à vontade no formato.

Numa entrevista sobre o filme para um canal de TV, a apresentadora lhe pergunta como foram as pesquisas para chegar ao roteiro. O diretor parece um pouco sem jeito, mas responde, por fim, que a pesquisa foi o fato de ele mesmo ter trabalhado no serviço de combate à dengue, que é um dos eixos do longa de 2018.

Acompanhamos ali o trabalho do grupo de profissionais encarregados do combate à dengue, que diariamente percorrem a cidade de Contagem, na Grande Belo Horizonte. Eles podem ser bem recebidos ou enxotados, topar com piscinas cheias de insetos, escadas precárias ou senhoras que oferecem um chá.

Enquanto isso, instruem a novata, Juliana —vivida por Grace Passô—, que espera notícias do marido. Ela acaba de se instalar numa casa na cidade e, presumivelmente, ele deve ir ao seu encontro. No entanto, o marido não manda notícias. Em vista disso, Juliana começa a frequentar os colegas, suas festas, seus amigos.

A "estética do silêncio" —termo que roubo do livro de Kiju Yoshida sobre Ozu— de Novais novamente se manifesta. Ali nunca é questão de dizer, mas de mostrar.

Contagem revela uma surpreendente beleza, onde as cores se acomodam umas às outras, sem estridência. Quando alguém sobe numa laje, a paisagem se abre. Tudo respira a vida, mesmo as incertezas de Juliana, mesmo o lago poluído onde ela conversa com um colega.

No final, o passeio na lagoa com os colegas e, sobretudo, o velho carro que emperra. É preciso empurrar para que pegue outra vez. Juliana toma o assento do motorista. Quando o carro volta a funcionar, Juliana, em vez de parar para recolher os colegas, acelera. Podemos pensar, de início, que está carregando a bateria do carro. Mas ela prossegue.

E sobre a imagem de seu rosto o filme termina, sem fechar sobre um significado para seu gesto: brincadeira, gesto de liberdade, sentimento de plenitude, trote nos amigos, reencontro consigo.

O caminho está definido, por ora. Trata-se de mostrar a vida de uma pequena classe média mineira, seu trabalho, angústias, alegrias. Sem julgar o que acontece. Mostrar o que acontece, embora não como um documentário.

O procedimento é semelhante no novo "O Dia que Te Conheci". Zeca, vivido por Renato Novais, se atrasa para o serviço por dificuldade de acordar; o ônibus em que está quebra; o pastel que pede, demora. A isso segue-se a demissão por faltas e atrasos; o encontro com Luísa, papel de Grace Passô, a funcionária que lhe vem anunciar a demissão.

De novo a vida cotidiana, mas aqui o tom é dado por Zeca e sua dificuldade de responder às obrigações do dia a dia. Da dificuldade surge a hipótese de conhecer melhor Luísa. E de descobrir afinidades que nem de longe se anunciam quando começa o dia.

No fim de tudo, uma topada a caminho da padaria e um ferimento. O que pode significar ela no contexto de um amor que se anuncia?

Dois atores, poucas locações, poucos acontecimentos, porém decisivos, concentrados em um dia. Nenhum comentário sobre o que virá ou passou —o mundo, em toda sua ambiguidade, permanece aberto. O que vimos é o que aconteceu, reduzido à máxima simplicidade, com a máxima segurança.

O que Novais traz, filme após filme, é vida e nada mais. Vida depurada de tudo que lhe seja alheio, em filme que busca interferência mínima no real.

A solidez, as variações, a originalidade e a beleza que André Novais até aqui conseguiu imprimir em seu cinema fazem dele, já, um dos principais cineastas brasileiros do século 21. A homenagem que recebe em Tiradentes não poderia ser mais justa.

Fantasmas

Pouco mais de um mês

Quintal

  • Elenco Maria José Novais Oliveira, Norberto Novais Oliveira, Ítalo Laureano
  • Produção Brasil, 2015
  • Direção André Novais Oliveira
  • Link: https://youtu.be/p6BwKHlIT3U

Ela Volta na Quinta

  • Onde Disponível no Looke
  • Elenco Maria José Novais Oliveira, Noberto Novais Oliveira, Élida Silpe
  • Produção Brasil, 2014
  • Direção André Novais Oliveira

Temporada

  • Onde Disponível na Netflix e no Looke
  • Classificação 12 anos
  • Elenco Grace Passô, Russo Apr, Rejane Faria
  • Produção Brasil, 2018
  • Direção André Novais Oliveira
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