Pintores superam o tema da seca e das mazelas e situam novas narrativas no sertão

Artistas como Antonio Obá ambientam suas obras em solo árido para discutir tramas existenciais, políticas e fantásticas

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duas mulheres negras de vestido branco no meio do cerrado

O artista plástico Antonio Obá, que fez a capa de 'O Avesso da Pele' para a Companhia das Letras, ilustra a nova edição de 'Estela sem Deus', também de Jeferson Tenório Divulgação

Matheus Lopes Quirino
São Paulo

Uma trupe esquálida caminha pelo sertão onde o céu é povoado por carcarás. A ave, associada à morte e ao mau presságio, é um elemento importante deixado em segundo plano pelo pintor Cândido Portinari, que retratou na tela "Os Retirantes" um povo marcado pela miséria e pelas agruras da caatinga.

Quadro "Os Retirantes", de Cândido Portinari - Reprodução

A pintura, de 1944, é uma das mais emblemáticas da arte moderna brasileira, figura em livros didáticos, enciclopédias e almanaques, sempre usada para contextualizar a dura realidade do cotidiano da seca, que atinge principalmente a região Nordeste do país.

Quando se pensa em sertão, a iconografia do périplo pelo semiárido, presente também no enredo do romance "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, ajudou a formatar um imaginário pictórico muito disseminado pela região Sudeste por décadas, como já apontava o escritor Carlos Drummond de Andrade há 40 anos.

"Jenner Augusto sob o céu de chumbo/ sob o céu violeta/ lê o horóscopo das criaturas/ que nos Alagados/ morrem sem viver" são versos do poeta, que dedicou uma de suas colunas no Jornal do Brasil a um dos nomes mais importantes do cânone plástico nordestino do século 20, hoje praticamente desconhecido, o sergipano Jenner Augusto.

Conhecido pela representação melancólica dos sertanejos em obras da série "Alagados", Augusto foi influenciado por Portinari, que conheceu no Rio de Janeiro em 1956, ano do lançamento de "Grande Sertão: Veredas", romance de João Guimarães Rosa, referência para artistas que se propõem a desbravar a paisagem seca.

Hoje, abordagens sobre o tema se diversificaram, ainda que de maneira tímida, a partir do momento que o circuito da arte passa a olhar com mais cuidado a produção local de artistas fora do eixo Rio-São Paulo.

Conhecido pelas suas paisagens aterradoras em um cerrado onírico, o pintor Antonio Obá foi buscar, na literatura, referências sobre como o sertão reverbera nas artes fora da perspectiva convencionada da carestia.

"A grande referência que hoje eu estou revisitando é a de Guimarães Rosa. 'Grande Sertão Veredas', que vai desmistificar essa invenção desse sertão, uma palavra que aparentemente só existe na língua brasileira, esse 'desertão'."

Segundo o artista, que lançou também o livro "Antonio Obá", ao longo dos séculos se criou um grande distanciamento e uma mistificação da região. "Quando Guimarães Rosa vai para o sertão, é quase um olhar estrangeiro, porque ele traz uma visão muito peculiar que transpõe esse sertão geográfico para um sertão metafísico", diz.

Obá, que está com uma exposição individual em cartaz na Pina Contemporânea até meados de fevereiro, é conhecido por pinturas soturnas, em paisagens que trazem os caminhos sinuosos e fantásticos do cerrado e do sertão.

Segundo o professor de história da arte Jorge Coli, colunista deste jornal, Obá tem "um modo de tecer luz e cor, seu sentido dá evidência nas figuras, sua estratégia de composição revela uma arte que passa pelo amor dos grandes mestres, e isso sem nenhuma subserviência", escreveu, em uma crítica recente a respeito da obra de Obá.

Já o pintor Davi Rodrigues, que teve sua primeira individual sediada na galeria Sé, em São Paulo, no ano passado, traz elementos cotidianos e frugais associados à vida interior da pequena Cachoeira, cidade no Recôncavo Baiano com pouco mais de 30 mil habitantes.

"A Evolução do Picolé" ocupou o imóvel construído pelo arquiteto Flávio de Carvalho e apresentou uma série de desenhos, pinturas, gravuras com signos do povoado baiano, inclusive imagens folclóricas, como os personagens da série "Máscaras do Recôncavo Baiano", em que o artista usa pontilhismo e cores neon em retratos fantásticos e alegóricos.

Aos 55 anos, o artista traz figuras de peixes e se associa a tradições, como a xilogravura e o naïf, mas também atualiza o estilo popular, que consagrou figuras como os pintores Manuel Neto e Ivonaldo de Melo a escultores nordestinos como Mestre Vitalino. Rodrigues traz pequenas histórias, em imagens, importantes para a cultura local de Cachoeira, como uma crônica que nasce de objetos miúdos —uma abordagem delicada.

Já outro artista do Recôncavo, de uma geração mais recente, procura explorar pequenas narrativas do sertão em pinturas com teor questionador, relacionadas à cultura pop. Aos 29 anos, Felipe Rezende chegou a São Paulo para uma residência no Pivô em 2022 e se ambientou na região central da cidade.

Influenciado por HQs e pela cultura gráfica, o baiano teve uma individual no primeiro semestre deste ano na galeria Leme, onde apresentou o Brasil profundo em pinturas feitas em lonas de caminhão. Em suas paisagens, que trazem figuras de trabalhadores no dia a dia, ao estilo de Maxwell Alexandre, Rezende une pescadores, passantes e monstrinhos Pokémon, em situações que beiram quase um estado de sonho.

Essa influência do desenho e do onírico é algo potente na obra de outros jovens artistas, como se vê em vários trabalhos da primeira turma de artistas do Sertão Negro, escola de arte sediada em um quilombo em Goiás, fundada pelo pintor Dalton Paula, cujo nome já evidencia uma relação estreita entre terra, homem e luta.

Dentro da instituição, novos pintores como Abraão Veloso, Jhony Aguiar e Tor Teixeira também levam suas narrativas para a internet, terreno fértil para se discutir, explicar e compartilhar novas narrativas que vão surgindo.

O Instagram é a rede social onde se pode ver com maiores detalhes alguns artistas que trabalham as subjetividades do sertão, como se vê nas telas da pintora e ilustradora piauiense Monica Barbosa, que "faz um trabalho colorido, que flerta com a ilustração e a arte e, de maneira muito pessoal, também traz o sertão fora dos clichês", ressalta a curadora Cecília Ribeiro, da galeria Cecí, no Recife.

O espaço nasceu em 2020, com um olhar regional que abraça novos nomes da cena artística na capital pernambucana onde, de longe, pode-se vislumbrar o sertão e sentir os ventos frescos de uma nova paisagem.

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