Marina Abramovic diz que o politicamente correto de hoje prejudica a liberdade

Artista ícone da performance inaugura sua primeira obra pública no Brasil na Usina de Arte, no interior de Pernambuco

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A obra 'Generator' (2023), de Marina Abramovic

A obra 'Generator' (2023), de Marina Abramovic Andréa Rêgo Barros

Águra Preta (PE)

Uma faixa escura aparece sobre um monte no horizonte, mas o sol é tão forte que o visitante pensa que talvez seja uma miragem. Ao subir a serra por uma estrada, contudo, a imaginação se torna realidade —um paredão preto se estende por 25 metros, instalado num chão de pedras que lembram cascalho.

Na muralha, estão aplicados 12 conjuntos de quartzo rosa trazidos das minas de Minas Gerais. Cada conjunto é formado por três pedras, uma localizada na altura da cabeça de quem se aproxima, outra próxima ao coração e uma terceira na região dos genitais. A proposta é que o visitante encoste seu corpo nos minerais e ali fique por pelo menos 20 minutos para trocar energia com as rochas e tirar as próprias conclusões do que sente, diz Marina Abramovic, a autora da obra.

A obra 'Generator' (2023), de Marina Abramovic
A obra 'Generator' (2023), de Marina Abramovic - Andréa Rêgo Barros

"Agora, com as guerras e os problemas do planeta, tudo o que precisamos é criar um estado de amor incondicional, criar uma situação na qual nós aprendamos a amar o planeta. Os minerais são um computador complexo da memória do nosso planeta", afirma ela, numa entrevista por vídeo na qual discorre sobre o suposto efeito de seu muro mágico no público.

Intitulada "Generator", a escultura interativa é o primeiro trabalho da artista sérvia, um dos nomes mais influentes na arte desde o final do século 20, num espaço público no Brasil. A obra foi pensada especificamente para o local onde está instalada, a Usina de Arte, um parque com obras a céu aberto localizado junto à uma antiga usina de moagem de cana a duas horas de carro de Recife.

"Generator" é também um testamento da longa relação da artista com o Brasil. Abramovic conta que nas diversas visitas que fez ao país desde 1989 se dedicou a procurar minerais. Ela foi para Marabá, para a Amazônia, para a Serra Pelada ver a mineração de ouro e para o estado de Minas Gerais, claro.

"Eu ia para as minas e perguntava se podia descer e ficar só, com os minerais. Eu queria que os minerais me dissessem o que fazer, não queria ter uma ideia antes. Era difícil conseguir permissão dos mineiros. Eles achavam que eu era completamente louca, mas me deixavam fazer isso", ela conta, com sua fala rápida e acento forte do Leste Europeu.

Uma das primeiras ideias que as rochas lhe deram foi a de fazer sapatos com pedaços grandes de ametista, que viraram a obra "Shoes for Departure", de 1991, na qual o público é convidado a tirar seus tênis e colocar os pés nos calçados minerais que, de tão pesados, não se mexem. "Não é para o andar físico, é para a partida mental", ela diz.

Hoje com 77 anos, Abramovic foi talvez a principal responsável por tirar o status de marginal da performance e inseri-la nos museus e galerias e até na cultura pop, como no caso de uma peça que fez no MoMA, em Nova York, em que ficava cara a cara com o visitante pelo tempo que ele desejasse —seu ex-companheiro, Ulay, apareceu em certa ocasião, e o vídeo da artista chorando de frente para ele rodou a internet.

Ela também realizava coisas bem mais perigosas do que encarar estranhos. Em "Rythm 0", dos anos 1970, a artista colocou uma série de objetos em uma mesa, dentre os quais um revólver e uma bala, e disse que as pessoas, de posse dos artefatos, poderiam fazer o que quisessem com ela. Um espectador carregou a arma e colocou na mão da artista, fazendo Abramovic apontar a pistola para o próprio pescoço.

Esta performance seria impensável no clima politicamente correto de hoje. "O politicamente correto prejudica a liberdade de um artista e a sua criatividade. Havia muito mais liberdade nos anos 1970", ela diz, citando os trabalhos de Chris Burden como obras que atualmente seriam vetadas. O americano testava os limites em suas performances, como no caso de uma em que pediu para um amigo atirar em seu braço com uma espingarda, levando o artista a parar no hospital.

A artista Marina Abramovic
A artista Marina Abramovic - Filip Van Roe/Divulgação

A inauguração de "Generator" marca uma nova fase para a Usina de Arte, sinalizando o momento em que o parque passa a abrigar mais obras de artistas internacionais, depois de anos investindo em nomes brasileiros. Acaba de ser inaugurada a instalação em mármore e metal "Fall of the Giants", ou queda dos gigantes, do casal francês Anne e Patrick Poirier, e para este ano também está previsto um trabalho do cubano Carlos Garaicoa.

Instalado ao lado de galpões em ruínas de uma das ex-maiores usinas de cana do Brasil, no município de Água Preta, em Pernambuco, o parque tem mais de 45 obras ao ar livre, incluindo trabalhos de Bené Fonteles, Carlos Vergara, Claudia Jaguaribe, Saint Clair Cemin e Túlio Pinto. A Usina de Arte chamou atenção nas redes sociais em 2021, quando inaugurou um trabalho da pernambucana Juliana Notari, uma land art em forma de vulva gigante instalada num morro.

É em diálogo com esta obra de caráter feminista, que propõe discussões sobre gênero e o papel da mulher na sociedade, que o trabalho de Marina Abramovic se encaixa, diz Ricardo Pessôa de Queiroz, um dos fundadores da usina. "Ela é uma mulher de muita força e resistência."

Inauguração de 'Generator' com a presença da artista

O jornalista viajou a convite da Usina de Arte

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