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Peça de Eugène Ionesco é como 'Macbeth' com genocídio generalizado

Traduzido pela editora Temporal, a obra 'Macbett', do dramaturgo romeno, tem vazio existencial como tema central

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Macbett

  • Preço R$ 72 (208 págs.)
  • Autoria Eugène Ionesco
  • Editora Temporal
  • Tradução Marina Bento Veshagem

A editora Temporal publicou recentemente "Macbett" (1977), do dramaturgo romeno, naturalizado francês, Eugène Ionesco. A tradução é de Marina Veshagem, que também assina o prefácio da edição, no qual destaca que a peça foi escrita sob a influência de "Shakespeare Nosso Contemporâneo" (1961), de Jan Kott. Segundo Ionesco, Kott mostra que, para Shakespeare, "o poder absoluto corrompe absolutamente", por isso "todo o poder é criminoso". No seu estudo, o crítico compara Stálin a Macbeth.

Mas a peça não alude apenas ao autoritarismo sanguinário de Stálin —ela também leva em conta os regimes capitalistas. Em "Macbett", ninguém é realmente representante do povo, pois, chegando ao poder, todos são iguais, ou seja, lutam por seus próprios interesses. Por isso, talvez, as personagens acabem por repetir as mesmas falas, compartilhando assim um mesmo discurso.

'A Performance of Macbeth' é uma montagem lendária da Royal Shakespeare Company com Ian McKellen e Judi Dench foi gravada e exibida como filme na TV
'A Performance of Macbeth' é uma montagem lendária da obra de Shakespeare, que inspira a peça 'Macbett', de Eugène Ionesco - Divulgação

Como nada parece ter mudado ao longo dos séculos, "Macbett" não perdeu sua contundência e atualidade, servindo para pensar, parece-me, o cenário político atual.

Enquanto "Macbeth" de Shakespeare se desenvolve em torno de um regicídio, a versão de Ionesco mostra um genocídio generalizado. Nesse cenário, não há mais remorso nem justiça, porque não há reflexão. Para o dramaturgo, aliás, sua obra era uma "máquina de esmiuçar o vazio". "Não há nada além de cascas. Tudo é máscara de qualquer coisa. E a máscara é ela mesma uma máscara, sob a qual não há face", diz.

O vazio existencial é um tema caro ao dramaturgo, que o explorou desde sua peça de estreia, "A Cantora Careca". Para tratar dessas questões, Ionesco se vale do grotesco, da caricatura e do humor, o que faz com que o seu teatro seja "violentamente cômico" e "violentamente dramático", conforme a sua estética almejava. O riso que suas peças desperta no espectador não atenua, porém, a denúncia da absurda naturalização das situações mais abjetas e inconcebíveis na nossa sociedade, entre elas a irracionalidade política.

"Macbett" inicia em um campo de batalha. Ouvem-se tiros, suspiros, gemidos e, de repente, "uma mulher descabelada, gritando, atravessa correndo o palco da esquerda para a direita". É pela direita que entra também, nesse cenário devastador, um vendedor de "limonadas fresquinhas", para civis e militares que queiram "aproveitar" a trégua.

Essa personagem pode parecer surreal e engraçada, mas não é ingênua —a tragédia a sua volta parece ser vista por ele como uma oportunidade muito boa para o seu negócio. As mortes despertam apenas a sua curiosidade mórbida. A banalidade do mal, de Hannah Arendt, certamente dialoga com essa peça tardia de Ionesco.

Pouco antes da entrada do vendedor de limonadas, um diálogo entre os barões Candor e Glamiss anuncia uma espécie de filosofia liberal, adequada ao contexto. Candor sentencia: "O direito de aumentar nossas riquezas. Autonomia". Glamiss concorda exclamando: "Liberdade!".

O vendedor de limonadas, esse empreendedor liberal, que aproveita qualquer oportunidade para fazer dinheiro e movimentar o mercado, ao final da cena, também é morto. Afinal, em meio ao caos e ao ódio generalizados, não há mais segurança para ninguém.

O único atributo de Macbett é ser um genocida que se gaba de ter matado "centenas e centenas, com minhas próprias mãos. Mais de uma centena de oficiais e de soldados que não me tinham feito nada. Mandei fuzilar outros, centenas e centenas, pelos pelotões de execução [...]. Dezenas de milhares, homens, mulheres e crianças, estão mortos asfixiados em cavernas, sob os escombros de suas casas, que mandei explodir".

No desfecho, Macol mata Macbett com o apoio popular. Diferentemente de Macbeth, no qual um bom monarca volta a reinar, na peça de Ionesco, Macol decreta: "Agora que o tirano está morto e que ele amaldiçoa sua mãe por tê-lo feito nascer, lhes direi isto: minha pobre pátria verá reinar mais vícios que anteriormente. Ela sofrerá mais, e ainda mais do que nunca, sob minha administração".

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