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Ainda se espera que mães renunciem à liberdade, diz autora de 'Abandonadoras'

Livro da jornalista Begoña Gómez Urzaiz reúne histórias de mulheres que se afastaram de filhos em nome de desejos

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São Paulo

Na natureza, faz pouco sentido a ideia de que cabe tudo num coração de mãe —em alguns, mal cabem seus filhos.

As mães de algumas espécies de peixes precisam ser separadas dos filhotes para que elas não os devorem. Focas abandonam seus filhos e cucos, aquelas aves dos relógios, largam seus bebês em ninhos de outras espécies para que elas os criem.

A maternidade como conhecemos —pura, repleta de sacrifícios, associada a uma ideia de santidade com a renúncia da liberdade em troca de amor— é fruto de uma construção social, propõe a jornalista espanhola Begoña Gómez Urzaiz em "As Abandonadoras".

A jornalista Begoña Gómez Urzaiz, autora de 'As Abandonadoras'
A jornalista Begoña Gómez Urzaiz, autora de 'As Abandonadoras' - Divulgação

No livro, lançado pela Zahar, ela observa quem são as mães —reais e fictícias— que abandonam seus filhos para compreender, afinal, quais são as expectativas quebradas quando uma mulher faz isso.

O cardápio é vasto. Passa pela sofredora Anna Karenina, retrato da alta sociedade russa do fim do século 19, pelas personagens de Meryl Streep —como "A Escolha de Sofia" e "Kramer vs. Kramer"—, pela escritora britânica Doris Lessing, pela cantora e compositora Joni Mitchell e até Maria Montessori, mãe do método pedagógico que preza pela autonomia infantil.

"A ideia que temos de maternidade hoje não é tão distante daquela dos anos 1950, ou do começo do século 20", diz Uzaiz. Essa ideia, para Urzaiz, é a de um papel quase imaculado, de santidade, que envolve, inclusive, uma distância da ideia de desejo.

"As mães não costumam ser vistas como desejadas. E elas não têm permissão, ou não tinham até pouco tempo atrás, de explorar seus desejos."

Ela cita o filme "Carol", estrelado por Cate Blanchett, como exemplo de uma mulher que precisa renunciar seu papel de mãe para viver seu desejo pleno como lésbica nos anos 1950.

"As mães que abandonam seus filhos são casos raros", afirma, "mas qualquer pessoa que tem filhos e decide não cuidar deles é um problema". A diferença, ela ressalta, é que homens historicamente têm feito isso sem sofrer os mesmos julgamentos reservados às mulheres.

Mas Urzaiz mostra que mesmo as mães que sacrificam seus desejos ou se distanciam dos filhos em prol do que é melhor para os eles sofrem julgamentos.

Doris Lessing, a Nobel de Literatura, exemplifica bem o caso. "Mesmo pessoas que não alimentam um interesse especial por sua figura ou por seus livros sabem duas coisas sobre ela: que ganhou o Nobel e que abandonou os filhos", escreve Urzaiz.

A escritora, primeiro, deixou o marido e seus dois filhos. Depois partiu da Rodésia do Sul, onde vivia, para Londres sem as crianças. Levou consigo seu terceiro filho, Peter.

Lessing traduziu a experiência de abandono de filhos para sua ficção, em "Um Casamento sem Amor". Urzaiz diz que, apesar de a autora afirmar em entrevistas que abandonar seus filhos foi a coisa certa a fazer, não embarca na narrativa de que essa separação é, por via de regra, empoderamento.

"Discordo da ideia de que essas mulheres são automaticamente heroínas por fazer algo que quebra a norma. É algo que muitas feministas mais antigas descreveram como um mérito de Doris Lessing, como se fosse a melhor coisa que ela fez, além de escrever livros de grande importância, fosse deixar seus filhos para fazê-lo."

O arrependimento faz parte da narrativa. Montessori, por exemplo, depois de dar à luz seu filho Mario e deixá-lo com uma família adotiva no interior da Itália sem registrar sua maternidade, viveu em aflição ao ver que o pai, seu companheiro de pesquisa, registrou o menino e o enviou a um internato.

A situação foi revertida quando a médica contatou o garoto, então com 15 anos, por meio de uma carta e o sequestrou, com conivência também do pai.

"Não sei se muitas dessas mulheres, no final de suas vidas, diriam que fizeram a coisa certa. Elas fizeram o que poderiam fazer naquele momento", diz a autora.

As Abandonadoras

  • Preço 79,90 (280 págs); R$ 39,90 (ebook)
  • Autoria Begoña Gómez Urzaiz
  • Editora Zahar
  • Tradução Eliana Aguiar

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