Livro de estreia de jovem autora do Zimbábue chega ao Brasil; leia

"Esperança para Voar", primeiro romance de Rutendo Tavengerwei, 26, será publicado no próximo mês

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Rutendo Tavengerwei tradução Carolina Kuhn Facchin

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página integra "Esperança para Voar", primeiro romance da autora, que a Kapulana lança neste mês. A história se passa no Zimbábue, em 2008, ano de grave crise política no país, com foco em duas adolescentes: uma que volta ao país depois da morte de seu pai e outra que enfrenta batalha contra o câncer.

 

O sinal tocou, marcando o final do primeiro período de atividades do dia. Hora do almoço! Os alunos se apressaram até o refeitório, que ficava a uma curta distância.

— Você acha que pode fazer isso sozinha? —perguntou Tanyaradzwa.

Shamiso a ignorou completamente. Tanyaradzwa deu de ombros.

— Você que sabe —arrumou as alças da mochila antes de sair da sala.

Shamiso esperou até que Tanyaradzwa saísse da sala e seguiu a multidão, andando pela alameda larga e cheia de jacarandás e árvores de goma balançando contentes nas calçadas. Ela inspirou o cheiro forte. Um caroço se formou em sua garganta. O pai sempre falava do antigo festival, quando os jacarandás comemoravam o nascimento de novembro. Isso acontecia há tempos, depois da guerra de libertação, quando o pai era só um menino crescendo na vila junto com um patriotismo e um zelo estrondoso para servir sua Nação recém-nascida. Quando o país tinha passado de Rodésia para Zimbábue.

O pai contava histórias sobre a guerra, a "luta de guerrilha". Contava sobre como o país tinha sido reconquistado pelos revolucionários, saindo das mãos dos colonialistas. Contava sobre como queria ter participado, lutado pelo país, pela liberdade do seu povo. O problema é que ele era jovem demais na época. Mas, já mais velho, morando na cidade, tinha tentado servir o país do seu jeito: escrevendo. Ela lembrava do discurso emocionado de um de seus artigos sobre como a luta pela libertação tinha mudado tudo.

A brisa gentil das árvores a acompanhava em seu caminho solitário até o refeitório. Ela secou a testa novamente. Já fazia muito tempo, e ela era muito nova, mas não lembrava de ser assim, tão quente. Olhou para o céu azul e límpido, tão diferente do céu de Slough, que normalmente era cinza.

As amigas de lá perguntaram, antes de ela ir embora, se ela ia viver com tigres e elefantes na floresta, como o Tarzan. Ela quase não lembrava da vida no Zimbábue, mas, ainda assim, achou estranho que elas perguntassem isso. Sorriu com a lembrança. Tudo que podia fazer era torcer para que a distância não engolisse as amigas, esgotasse seus esforços e desgastasse todas as memórias.

Ela sentia saudade das amigas de Slough. Especialmente Mary-Allen e Katlyn. De quando elas se encontravam para fazer nada. Agora tudo dependia da diferença de fuso-horário, do calendário escolar e de uma conta de telefone alta demais, que ela mal podia pagar. Mesmo assim, era difícil não se sentir magoada pelo fato de elas não fazerem muito esforço, especialmente porque elas sabiam pelo que ela tinha passado. Mas era por isso que não precisava de amigas. Porque no fim das contas, de um jeito ou de outro"¦ todo mundo ia embora.

Sua sombra cintilava em frente, uma lembrança de como era solitária. Ela sentiu infinitos olhares incisivos sendo lançados em sua direção e acelerou o passo, ansiosa para chegar ao refeitório. O holofote parecia tê-la selecionado. Todas as risadas e os comentários pareciam direcionadas a ela.

Finalmente chegou ao refeitório. As telhas estavam queimadas pelo calor. O contraste com a cor vibrante das árvores era estranho.

Um jovem estava sentado em um banco antigo na sombra de uma das árvores. Seu macacão estava dobrado, expondo as pernas magras e acinzentadas. Provavelmente, ele era da fazenda próxima. Um fósforo balançava suavemente no canto da sua boca, cutucado pela língua. Tinha uma lata de água perto dos seus pés. Os olhos dele se moveram na direção de Shamiso. Ela se perguntou se ele tinha regado alguma coisa. O gramado parecia sedento ao sol, desigual e seco.

— Por aqui —disse Tanyaradzwa, indicando que Shamiso a seguisse. Shamiso a olhou surpresa. Tanyaradzwa acenou novamente para que Shamiso fosse com ela até uma mesa no meio do refeitório. Cada mesa tinha duas tigelas, cada uma coberta por um prato para proteger seu conteúdo dos insetos. Ao lado das tigelas havia uma pilha com dez pratos, duas conchas e colheres.

Tanyaradzwa sentou na cadeira.

— É sopa de feijão, caso você esteja se perguntando —ela levantou o prato que cobria uma das tigelas. Shamiso franziu o rosto e afastou uma cadeira. A tigela exalava um aroma denso. Tanyaradzwa riu quando notou a expressão de Shamiso.

— Para ser justa, a comida costumava ser muito boa —disse Tanyaradzwa enquanto mexia num prato, colocando-o de volta na mesma posição. —É só que ultimamente... —ela se segurou. —Bom, você vai se acostumar... ou pode fazer a coisa que parece mais sensata: morrer de fome!

Um sorriso escapou dos lábios de Shamiso. Ela o escondeu rapidamente e desviou o olhar. Algo sobre as paredes descascadas a fez pensar na casinha onde havia deixado a mãe, em Rhodesville, um subúrbio com poucos habitantes em Harare. Parecia que nada podia ser feito sobre elas lá também. A mãe tentou, insistindo que a casa deveria parecer um lar. Ela tinha esfregado as paredes até as unhas sangrarem. Mas a tinta era lavável, e elas acabaram descoloridas. Shamiso se perguntou, enquanto estava lá sentada, o que ressentia mais: ficar presa em um internato no meio do nada ou aquelas paredes horríveis do refeitório.

Ela olhou de novo para a tinta descascando. Com certeza, as paredes. 

mulher em meio a flores e desenhos de colegiais
Ilustração de Laura Athayde para imaginação de Rutendo Tavengerwei - Laura Athayde

Rutendo Tavengerwei, 26, é escritora.  Nascida no Zimbábue, estudou  direito na África do Sul e na Suíça e atualmente trabalha na Organização Mundial do Comércio, em Genebra.

Carolina Kuhn Facchin, 28, formada em letras pela UFRGS, é tradutora e assistente editorial.

Laura Athayde, 28, é ilustradora e cartunista.

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