Descrição de chapéu Copa do Mundo

Rússia não deve ir longe, mas Putin só quer colher efeitos políticos da Copa

Estudioso da história do futebol russo analisa semelhanças e diferenças entre torneio de 2014 e o deste ano

Manuel Veth

[RESUMO] Estudioso da história do futebol da Rússia analisa semelhanças e diferenças entre a Copa de 2014 e a deste ano. Para ele, Putin se dissociou do desempenho em campo e se importa apenas com a organização do torneio.

 

Organizar a Copa envolve problemas tanto para o Brasil como para a Rússia, dada a difícil situação econômica desses países. Mas apenas um deles é um agente relevante no cenário mundial Eventos esportivos são ferramenta política crucial para o Kremlin. Putin aproveitará para transmitir uma imagem positiva para o restante do planeta. Mas os efeitos internos são até mais importantes

Dentro de poucos dias, a Rússia sediará o maior evento esportivo do planeta. Será a terceira vez consecutiva que um país do grupo Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) organizará a Copa do Mundo. Nesse intervalo de tempo —na verdade, desde que os brasileiros receberam o torneio quatro anos atrás—, as coisas mudaram significativamente no cenário mundial.

No final de semana em que a Alemanha conquistou seu quarto título mundial, apresentei no Rio de Janeiro um estudo sobre as lições que a Rússia poderia aprender com o Brasil para organizar seu campeonato. Uma semana depois, publicamos no site Futbolgrad.com uma reportagem intitulada: "As lições da Copa do Mundo: o que o Brasil 2014 pode significar para a Rússia 2018".

Quatro anos atrás, parecia haver muitos paralelos entre os dois. Tanto o Brasil como a Rússia eram economias emergentes, integrantes do então ainda prestigioso Brics. Ambos eram países ricos em recursos naturais. E ambos enfrentavam problemas políticos internos profundamente enraizados.

A Rússia é dirigida por uma elite política que fez fortuna com a queda da União Soviética, em 1989. O Brasil passou por transformação semelhante quatro anos antes, quando a ditadura militar acabou.

Finalmente, em 2014, os dois países experimentavam problemas econômicos significativos devido ao colapso do petróleo que se seguiu à recessão econômica de 2008. Por isso, há quatro anos, parecia muito fácil traçar paralelos entre Brasil e Rússia. Apenas um dia depois de minha palestra no Rio, porém, as coisas mudaram repentinamente.

Apresentei meu estudo no dia 17 de julho de 2014. Quando voltei à capital fluminense, após a conferência realizada em Niterói, noticiava-se que o voo MH17 da Malaysia Airlines havia sido abatido no leste da Ucrânia, em local próximo à fronteira com a Rússia.

Como uma equipe holandesa de investigação confirmou no fim de maio, o avião foi derrubado por um míssil que integrava o arsenal de um regimento russo baseado em Kursk.

O abate do voo MH17 (acidental ou não) aconteceu no momento mais quente dos enfrentamentos na Ucrânia. A população daquele país havia derrubado o presidente Viktor Yanukovich, pró-Moscou, em fevereiro de 2014, no ápice de uma série de protestos realizados em Kiev.

Em poucos meses, a Rússia não somente passou a alimentar as ações separatistas na região do Donbass como ocupou e anexou a Crimeia.

O conflito na Ucrânia ainda não foi resolvido e afeta o futebol: por exemplo, o Shakhtar Donetsk, o maior clube do país, está mandando seus jogos na cidade de Kharkiv.

Mas os problemas na Ucrânia terminaram quase desaparecendo atrás da guerra civil na Síria, na qual a Rússia também desempenha papel importante. Lá, Moscou apoia o regime de Bashar al-Assad e, segundo reportagens publicadas nos últimos meses, pode ter ajudado o ditador sírio a preservar seu poder por meio do uso de força militar excessiva.

Esses dois acontecimentos bastam para mostrar as grandes diferenças entre Brasil 2014 e Rússia 2018. Nos dois casos, organizar a Copa do Mundo certamente envolve problemas, dada a difícil situação econômica desses países. Além disso, ambos são potências mundiais em termos de recursos naturais.

Mas apenas um deles é um agente importante no cenário mundial —e, desde 2014, vem se envolvendo cada vez mais nos assuntos internacionais. Isso dificulta qualquer comparação mais a fundo.

Também importa mencionar que a situação do presidente da Rússia, Vladimir Putin, difere da de Dilma Rousseff, cuja presidência pode ter terminado, para todos os fins práticos, naquela fatídica noite de 8 de julho de 2014, no Mineirão, quando o Brasil perdeu para a Alemanha por 7 a 1 na semifinal da Copa.

O acontecimento inesperado parece ter permitido que emergissem todas as queixas relativas ao governo federal. Ainda que a petista tenha vencido a eleição no segundo turno daquele ano, seu mandato já cambaleava e terminaria dois anos mais tarde.

Houve muitas especulações quanto à possibilidade de que Putin pudesse enfrentar seu Mineiraço. É fato que a seleção russa talvez seja a equipe mais fraca a ser anfitriã de uma Copa do Mundo, e é quase certo que a Sbornaya [seleção nacional, em russo] está a caminho de um resultado decepcionante.

No entanto, Putin foi esperto o suficiente para se dissociar do desempenho russo em campo. A única coisa que importa para ele e o seu governo é que o país se mostre capaz de sediar com sucesso o maior espetáculo da Terra.

Visitei a Rússia muitas vezes desde 2003. Vi uma transformação bem-sucedida: de uma nação combalida a uma potência temida e respeitada. A mão forte de Putin tirou o país do atoleiro do período pós-comunista, a era de Boris Ieltsin. Mas a mão forte tem seu custo.

Como o Brasil, a Rússia é controlada por uma oligarquia poderosa que administra a maior parte dos ativos cruciais do país. O Estado russo, contudo, conseguiu manter o controle sobre a maioria dos ativos mais importantes e sobre os oligarcas que os gerem.

O Estado —ou, em outras palavras, Putin— está no controle; como resultado, é capaz de usar recursos de maneira eficiente para completar projetos como a Copa do Mundo.

O melhor exemplo é a Olimpíada de Inverno de Sochi. Apesar da hashtag #SochiFails, o evento foi em geral descrito como um sucesso. Com gastos superiores a US$ 50 bilhões (quase R$ 200 bilhões), a Rússia apresentou um espetáculo que, em termos de jogos de inverno, dificilmente será superado nas próximas décadas.

De muitas maneiras, a competição olímpica preparou o terreno para o Mundial de futebol. Assistindo à Copa das Confederações em 2017, fiquei deslumbrado com o grau de organização daquele torneio. Centenas de voluntários e trabalhadores garantiram planejamento e execução eficientes.

Alguns estádios até podem ter sido completados no último minuto. No entanto, ao contrário do que aconteceu no Brasil, onde o campo do Corinthians não estava 100% pronto para os primeiros jogos, todas as arenas utilizadas na Copa das Confederações tinham sido devidamente finalizadas.

A mesma coisa acontecerá neste ano. Algumas instalações —como os estádios de Volgogrado e Kaliningrado— podem ter enfrentado problemas no período preparatório, mas todas estarão prontas e terão passado por testes significativos antes da Copa.

Assim, no que respeita à organização do torneio, a Rússia estará preparada. Mesmo o medo de que torcedores arruaceiros causem problemas será eliminado pela mão pesada do Estado policial. As pessoas que viajarem para assistir aos jogos experimentarão um torneio estruturado em seus mínimos detalhes.

Tudo isso será importante porque eventos esportivos são uma ferramenta política fundamental para o Kremlin. O jornal Moscow Times os definiu como um catalisador para apresentar a nova Rússia ao mundo. Isso é correto, porque de fato Putin aproveitará o momento para transmitir uma imagem positiva de seu país para o restante do planeta.

Mas não se pode ignorar que os efeitos internos serão quase certamente mais importantes.

Torneios de grande escala fazem com que os russos acreditam que seu país tem lugar entre as superpotências capazes de organizar os maiores espetáculos do planeta.

Assim, a pressão internacional sobre o governo de Putin, na forma de boicotes diplomáticos, não incomodará em nada o Kremlin, porque os cidadãos russos não se incomodarão com a presença ou a ausência da elite política de outros países.

O único incômodo para os organizadores será o desempenho da Sbornaya. A Rússia pode ser uma excelente anfitriã para a Copa do Mundo, mas é improvável que sua seleção nacional seja competitiva —e talvez sofra uma derrota pesada já na fase de grupos. 


Manuel Veth, proprietário e editor-chefe da Futbolgrad Network, é doutor em filosofia e história pelo King's College de Londres, com tese intitulada "Vendendo o jogo do povo: a transição do futebol do comunismo ao capitalismo, na União Soviética e seus Estados sucessores".

Tradução de Paulo Migliacci.

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