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Grandes montagens põem em xeque existência da Lei Rouanet, diz produtor

Sem acesso a mecanismo de incentivo, artistas independentes espremem-se na seleção de editais

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Paulo Pélico

Há pelo menos 15 anos as verbas da principal fonte de financiamento da cultura brasileira, a conhecida Lei Rouanet, vêm se verticalizando na direção de projetos graúdos, como a agenda anual de entidades pertencentes a corporações ou vinculadas ao poder público, bem como no custeio de parte da próspera indústria de entretenimento no país, como shows internacionais e espetáculos musicais na linha Broadway.

Musical "O Rei Leão", contemplado pela Lei Rouanet, apresentado em SP em 2013 e 2014
Musical "O Rei Leão", contemplado pela Lei Rouanet, apresentado em SP em 2013 e 2014 - Claudio Manculi/Frame/Folhapress

Como consequência, o produtor de pequeno porte passou a enfrentar crescentes dificuldades para viabilizar suas ações por meio desse mecanismo. Empurrados para a periferia do sistema, produtores independentes das artes cênicas, por exemplo, somaram-se a grupos teatrais na disputa por verbas em editais lançados pelo poder público.

Já é possível observar certa separação das águas na produção teatral paulistana. De um lado, um punhado de musicais de franquia ou inspiração americanas, com generosos patrocínios, grandes elencos, produção luxuosa, estrutura profissional e farta campanha de divulgação.

De outro, um contingente de cerca de 300 grupos teatrais, de todos os tamanhos e tendências, e agora engrossado por produtores independentes, espreme-se na seleção de editais para viabilizar projetos. Em geral, são companhias com pouca estrutura e elenco cooperativado, propondo montagens de acabamento modesto, em espaços alternativos e minitemporadas sem divulgação. Um alto contraste, portanto.

Ao contrário do que se pode supor, a maior parte da classe artística é constituída de micro e pequenos empreendedores culturais. Mesmo nomes que a mídia se habituou a chamar de consagrados estão nessas duas categorias, ao menos quando produzem seus espetáculos.

Contando com prestígio e reconhecimento do público, esse segmento vinha enfrentando o funil da renúncia fiscal. Vez por outra, conseguia furar o cerco à Lei Rouanet, conquistar patrocínio e produzir seus projetos mais pessoais, em tons diferentes dos que se oferecem na produção que decorre do mundo corporativo e governamental, sem julgamento nessas referências.

Em 30 de novembro de 2017, porém, o Ministério da Cultura publicou a instrução normativa nº 4, cujos efeitos já se fazem sentir e que poderá piorar o que já está muito ruim.

O texto da norma não esconde a opção feita pelo MinC na direção do evento cultural de grande porte, dando continuidade à série de "aperfeiçoamentos" que a Rouanet vem sofrendo há algum tempo e que nos trouxeram ao cenário atual de verticalização das verbas.

Se nada for feito, em breve os recursos da lei se tornarão definitivamente inacessíveis para a maior parte da classe artística, expondo as raízes da nossa herança patrimonialista e nos propondo o seguinte paradoxo: um mecanismo da cultura, para a cultura, mas não para o artista.

Por quanto tempo seria possível sustentar tal contradição perante a sociedade? Como justificar a renúncia fiscal da cultura para financiar, majoritariamente, iniciativas do próprio governo e de entidades vinculadas a fortes grupos econômicos, além da produção de megaeventos?

Mesmo a reconhecida relevância de algumas dessas entidades culturais mantidas com dinheiro público não seria suficiente para evitar que uma Rouanet sem artista venha a ter sua legitimidade posta em xeque. E, nesse caso, não passaria no teste; sucumbiria pela via rápida da revogação oficial, como ocorreu com a similar Lei Sarney em 1990, ou por meio de uma progressiva invalidação ética.

Ninguém consegue calcular a extensão dos danos que o desaparecimento da Lei Rouanet provocaria na área cultural, com um corte em torno de R$ 1,4 bilhão nas verbas do setor, na média dos últimos anos. Que impacto haveria em termos de desmonte de infraestrutura, deterioração de acervos, descontinuidade de programas, ampliação do desemprego? É difícil expressar em números. A minha sensação é a de que a área cultural lembraria o desastre de um Boeing em câmera lenta.

Eis o dilema que a classe artística viverá em breve. De um lado, a extinção de um mecanismo que movimenta verbas e gera empregos. De outro, a consciência de que tal programa consome vultosos recursos públicos para sustentar uma produção de grande porte, marcadamente patrimonialista, na qual o artista está convertido em prestador de serviço. Nesse quadro, certamente o polêmico argumento "grande demais para quebrar" visitará o debate cultural com potencial para adiar decisões, mas não por muito tempo.

Exibindo uma política distributiva concentrada em níveis próximos do obsceno e dispondo de baixa legitimidade aos olhos da sociedade, que exige o oposto disso aos gritos, a velha Rouanet exalaria insalubridade institucional e se tornaria marketing tóxico. 


Paulo Pélico é documentarista e produtor de teatro, participou do processo que resultou na formulação e aprovação da Lei Rouanet em 1991.

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