[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página é uma cena da peça “Mukhtaran - Ensaios Sob a Guerra”, monólogo de mulheres em situações trágicas. A obra, feita há cerca de 15 anos, é inédita em publicação.
MULHER – Sim, éramos obrigados a tocar.
(com a mão direita protege os olhos dos muitos flashes)
VOZ – Como tocar?
MULHER – Nós, judeus, desde cedo estudamos música, afinal; era uma das poucas coisas permitidas para nós, isso, em tempos de paz, os nazistas sabiam isso, chegavam até a nos elogiar!...
VOZ – Onde e quando tocavam?
MULHER – Como?
MULHER – Vinha uma ordem do oficial para formarmos uma pequena orquestra entre nós prisioneiros, homens e mulheres e até crianças. Nessas ocasiões, descobríamos que muitos tinham conseguido burlar e ter ainda consigo seus instrumentos.
VOZ – Em quais ocasiões...?
MULHER – Geralmente... quando vinha alguma autoridade / e em 20 de abril sempre.
VOZ – E o que era 20 de abril?
MULHER – (chorando sem soluço) Aniversário de... do...
MULHER – De Hitler...
VOZ – Ganhavam alguma coisa com essa audição?
MULHER – Se ganhávamos?
MULHER – Sim, sim um pedaço de pão a mais e uma bolacha feita de serragem.
Naqueles momentos tínhamos uma... digamos anestesia da dor da fome, do frio, da humilhação feita de um sapato furado e de pão roubado. Por minutos esquecíamos o uniforme de listra e a crueldade dos SS e nos apegávamos a uns fiapos de felicidade e à recordação da beleza de uma sonata de Beethoven.
Ao longo da vida, a angústia da culpa por ter sobrevivido me acompanha. E muitas vezes, diante da vontade de desistir, lembro-me do olhar do meu pai, para que eu não deixasse meus pequenos dedos de criança perderem a mobilidade.
O frio poderia enrijecer meus débeis dedos de fome e eu não conseguir mais tocar, e com isso provocar a fúria dos SS e ali mesmo me abaterem, no meio da sonata.
Um prisioneiro húngaro doente e faminto, por mais esforço que fizesse, não conseguia soprar sua clarineta. Foi morto pelo oficial, em pleno Schubert. Seu instrumento caiu no chão, todo furado; ele tentou ainda pegá-lo se abaixando, quando recebeu mais tiros. Enquanto o pobre homem morria, eu e meu pai tocávamos com mais afinco, sobreviver, sobreviver, sobreviver.
Tocando o violino diante de nossos algozes e vendo ali meu pai em lágrimas tocar seu cello, jurei lutar, negar, mas fazer tudo para sobreviver ao horror.
Meu pai, mesmo em estado de choque pela violência e preocupado comigo, não errou uma nota.
Ele estudara música desde criança. Era o primeiro cello da orquestra de Berlim até 1933.
Naquele abril lá estava a vontade de viver do meu amado pai.
O azul dos seus olhos dizia-me: “Vá, vá, filhinha, vês essa passagem, que linda?”.
MULHER – No campo só o agora importava, o depois quase não existia.
Hoje dou manchete nos jornais em todo o mundo:
“Milena Goldman e seu violino mágico ontem esteve soberba solando Beethoven. Berlim a ovacionou de pé.”
Soberba... é, talvez; eu sei;
É especialmente para os alemães que toco melhor.
Devolvo-lhes o horror em sonata. “Afinal somos Homens, não?!!”.
(Silencia-se o burburinho dos jornalistas — Milena Goldman levanta-se, pega o violino e sai.)
Eugênia Thereza de Andrade, diretora e professora de teatro, é criadora do projeto "7 Leituras, 7 Autores, 7 Diretores".
Vienno é ilustrador.
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