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Sem depender da simpatia, papéis femininos ganham força em séries

'Sharp Objects' e 'Dietland' fazem parte de pequena revolução que propõe novas formas de ver a mulher

No livro “Homens Difíceis” (Aleph), Brett Martin aborda as três principais séries que transformaram o meio na “forma de arte americana mais característica da primeira década do século 21”: “Família Soprano”, “Breaking Bad” e “Mad Men”. 

Na televisão, homens podem ser infiéis, vender drogas ou matar —e ainda atrair a simpatia do público. “O universo da TV sempre esteve cheio de anti-heróis. Finalmente, as mulheres estão chegando ao mesmo patamar. Não importa se são simpáticas. Elas são interessantes?”, argumenta a produtora Marti Noxon.

Noxon escreveu, dirigiu e produziu episódios de séries como “Buffy, a Caça-Vampiros“, “Grey’s Anatomy” e “Mad Men”. “Todos em Hollywood estão querendo algo de Marti Noxon,” diz Jason Blum, diretor-executivo da Blumhouse e coprodutor da série “Sharp Objects”, trabalho mais recente de Noxon na HBO.

 
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A atriz Amy Adams em cena de “Sharp Objects”, série na qual interpreta a jornalista Camille Preaker - Divulgação

Baseada em “Objetos Cortantes” (Intrínseca), livro de estreia de Gillian Flynn, “Sharp Objects” conta a história de Camille Preaker, jornalista que retorna a sua cidade natal, no sul dos EUA, para cobrir uma série de assassinatos de meninas adolescentes.

Interpretada por Amy Adams, Camille substitui a água de uma garrafa plástica por vodca e usa roupas longas para esconder cicatrizes que formam palavras como “errada” e “desaparecer”. 

Dirigida pelo canadense Jean-Marc Vallée (de “Big Little Lies”), a série se preocupa mais com os traumas pessoais de Camille do que com a investigação dos crimes. Com uma edição que mistura memórias, sonhos e alucinações, “Sharp Objects” esboça o contexto cultural e psicológico em que as mortes das meninas ocorreram.

A fictícia Wind Gap é uma cidade fundada com o sofrimento feminino, onde as mulheres são criadas para casar e procriar. Quem não se conforma com os padrões é escorraçado pelos habitantes —e, sobretudo, por Adora Crellin (Patricia Clarkson), mãe de Camille. O conturbado relacionamento entre mãe e filha coloca em dúvida certas expectativas relacionadas a papéis femininos.

Em 2006, quando Flynn tentou vender os diretos de “Objetos Cortantes”, não havia interesse das editoras: “Disseram que os homens não queriam ler livros que tratassem de mulheres e que as mulheres não queriam ler sobre mulheres assim”. 

Noxon também não fazia ideia do que estava por vir quando propôs a série “Dietland” à Amazon Prime Video, uma adaptação do romance homônimo de Sarai Walker. Publicado em 2015, o livro precede o movimento #MeToo.

Em “Dietland”, Plum Kettle (vivida por Joy Nash) é uma redatora obesa que responde a dúvidas endereçadas a Kitty Montgomery (Julianna Margulies), editora de uma revista de moda. Pesando pouco mais de 130 kg, Plum se humilha em grupos de apoio para perda de peso e tenta juntar dinheiro para uma cirurgia bariátrica, mas acaba interceptada por um grupo terrorista de mulheres assediadas e cansadas de obedecer aos padrões de beleza.

Identificado como “Jennifer”, o grupo sequestra e executa homens acusados de abuso. Os atentados dividem a opinião das feministas; algumas são contra a violência, outras acham que a estatística americana de três mulheres mortas por dia, em decorrência da violência doméstica, é razão suficiente para apoiar o grupo (no Brasil, uma mulher é morta a cada duas horas).

A série produzida e adaptada por Noxon —e cancelada após uma única temporada— critica uma cultura complacente com o assédio e a agressão à mulher, mas também acusa o mundo da moda pela promoção de uma insegurança crônica.

Na série, Plum recebe mensagens de adolescentes com distúrbios alimentares e relacionamentos abusivos, mas a editora prefere incentivar um amor próprio que depende de procedimentos estéticos e roupas de grife.

Já com a segunda temporada em produção, “Insatiable” trata de Patty Bladell, uma adolescente gorda (a atriz Debby Ryan usando uma roupa com enchimento) que emagrece para se vingar dos colegas de escola.

Mais de 200 mil pessoas assinaram uma petição online pedindo que a Netflix cancelasse a série por propagar a ideia de que as mulheres só conseguem ser felizes se forem magras, em vez de promover a aceitação e combater o bullying em si.

Estamos acostumados com o enredo do patinho feio, de mulheres que conquistam a autoestima depois de mudar a aparência, mas o momento atual pede uma revisão de clichês. 

Noxon propõe perspectivas diferentes porque conhece os efeitos nocivos de certos padrões. Na adolescência, enfrentou uma anorexia grave. “Eu levei anos para ter uma epifania e buscar tratamento”, disse a produtora que também escreveu e dirigiu “O Mínimo para Viver”, filme da Netflix baseado em sua experiência com a doença.

Noxon percebeu o começo de uma mudança mais significativa na representação feminina em séries como “Homeland” (2011) e “Orange Is the New Black” (2013) —mas “Weeds” (2005), de Jenji Kohan, foi o divisor de águas.

Mulheres como Noxon, Kohan e Flynn fazem parte de uma pequena revolução que propõe novas formas de ver a mulher. Para a autora de “Objetos Cortantes”, Noxon foi essencial por compreender a extensão da violência, da sexualidade e da ira feminina —igual ou maior do que a de qualquer Tony Soprano, Don Draper ou Walter White. 


Ieda Marcondes, formada em cinema com pós-graduação em jornalismo cultural, é crítica de cinema.

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