Nunca uma derrota foi tão promissora para a centro-esquerda brasileira

Para autor, renovação pode surgir das perdas de PSDB e PT para um movimento de direita enraizado na sociedade

[RESUMO] Das cinzas das perdas de PSDB e PT para um movimento de direita antenado e enraizado na nova sociedade brasileira poderá surgir a renovação.

 

Nunca uma derrota foi tão promissora para a centro-esquerda brasileira.

Enquanto petistas e tucanos se esbofeteavam com luvas brancas num salão de bailes, embasbacados com a ilusão de que travavam uma guerra de vida ou morte, Godzilla emergiu das profundezas e arrasou Tóquio.

A efervescente sociedade brasileira não apenas puniu os responsáveis pela estagnação política e econômica dos últimos anos. Humilhou-os.

O jogo partidário havia se enrijecido, com meia dúzia de oligarquias estabelecidas entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990 ditando as regras e dificultando a entrada de novos jogadores.

Luiz Inácio Lula da Silva disputou cinco eleições presidenciais seguidas. Nas outras três, tutelou a indicação do PT. Fernando Henrique Cardoso, José Serra e Geraldo Alckmin concorreram duas vezes cada um ao longo dos últimos 24 anos. Essa brincadeirinha entre senhores poderosos acabou.

A dosagem do remédio para evitar a concorrência teve de ser aumentada com o passar dos anos até transformar-se em veneno. A dependência do financiamento empresarial atingiu o paroxismo de tornar o Congresso num balcão de negociatas e o Ministério da Fazenda, numa central de achaques.

Estatais, construtoras e até multinacionais que vendem carne para churrasco passaram a ser anexos orçamentários de partidos que mandavam nos governos federal e estaduais e nos respectivos colégios legislativos.

Havia, entretanto, o pacto constitucional de 1988 e seu viés corporativista. A autonomia conferida a policiais, juízes e procuradores dotou-os de poderes colossais e crescentes. Associados à vigilância da imprensa profissional, eles dinamitaram as bases humanas e materiais do conúbio entre oligarquias políticas e empresariais.

Havia também uma sociedade em transformação. O pauperismo dominante veio sendo rapidamente substituído pela hegemonia dos estratos remediados. A prevalência da ignorância e do analfabetismo foi superada pela dos brasileiros com ensino médio. A juventude cede à maturidade.

A novela, para usar alegoria do cientista político Marcus Melo, não é mais “Gabriela, Cravo e Canela”. É “O Rei do Gado”, com a diferença de que os peões não estão mais na fazenda sobre o lombo de mulas. Espremem-se nas ruas das cidades em motos de baixa cilindrada. No bolso, um smartphone.

A opressão da burocracia sobre quem empreende, a porcaria oferecida nas escolas e nos centros de saúde do governo, as ruas esburacadas, os sinais que não funcionam, a insegurança urbana, a soberba de autoridades investidas de pompa e privilégios aristocráticos, os seguidos flagrantes de indecência no trato dos recursos públicos e a transigência com lideranças políticas enredadas nos escândalos, tudo isso passa a contar mais na hora de decidir o voto à medida que a sociedade se torna menos faminta.

A direita conservadora, praticante do cristianismo sob várias denominações, marginalizada no jogo para poucos que prevalecera, organizava-se nas regiões mais prósperas quando o cavalo da mudança cruzou encilhado o campo cheio de feridos. Não perdeu a oportunidade.

Nesse cenário, como vai se comportar a oposição, que congregará integrantes do PT e do PSDB pela primeira vez desde Collor de Mello?

A primeira reação é inercial e está em curso: mais do mesmo. Há uma disputa entre figuras e partidos tradicionais pelo direito de carregar o espólio oposicionista até o próximo pleito. O PT, com o seu hegemonismo característico, começa a enfrentar uma rebelião incipiente, liderada por Ciro Gomes, do PDT, terceiro colocado na disputa de outubro. 

Essa configuração, entretanto, só seria eficiente diante da perspectiva de um colapso da administração de Jair Bolsonaro logo no início. As cartas voltariam rapidamente para onde estavam pouco antes do pleito que o elegeu, e a sucessão antecipada ficaria entre Fernando Haddad e Ciro Gomes. Esse desdobramento, entretanto, é altamente improvável.

O movimento oposicionista lúcido teria de partir de pressupostos bem mais realistas sobre a administração da nova direita:

a) ela tende a ser forte politicamente e popular na largada;

b) caso empreenda reformas econômicas fundamentais, o que não é pouco provável, será competitiva em 2022;

c) pela força gravitacional da Presidência, transformará a confusão atual de novos entrantes numa frente conservadora mais hierarquizada, coesa e enraizada na nova demografia brasileira;

d) produzirá várias frentes de atrito com outros Poderes, com os corpos regulares da burocracia federal e com a imprensa livre;

e) atropelará as agendas distributiva —em áreas como educação e saúde—, dos direitos humanos, da solidariedade social, da abertura intelectual e da tolerância comportamental.

Lula, a liderança que mandou no PT desde sua fundação e impediu a guerra de facções no partido após o petrolão, tende a ficar anulado pelos próximos anos, inelegível e preso. Parece questão de tempo a eclosão de disputas centrífugas na sigla, cujo centro de poder se deslocou do Sudeste para o Nordeste.

Não haverá mais vitimização do impeachment nem impopularidade de Temer nem perspectiva de eleição de Lula a fortalecer o flanco petista. Ciro sozinho tampouco oferece organização e fôlego para atravessar o longo deserto que se descortina diante da oposição. As poucas lideranças do PSDB que conquistaram poder estão mais próximas do movimento que impulsionou Bolsonaro que das plataformas moderadas da sigla.

A terra arrasada e a expectativa de uma extensa e pedregosa jornada à frente sugerem que uma reorganização mais profunda do polo opositor, que tenha como horizonte de maturação meados da próxima década, pode ser a mais eficiente combinação entre custos e benefícios.

Uma das consequências da consolidação de uma frente conservadora e nacionalista no Brasil ao longo dos próximos anos é tornar barata e lucrativa, para quem se dispuser a aventurar-se a partir de agora com ambições de prazo mais dilatado, a opção pelas plataformas que se contraponham ao poder ascendente e ao mesmo tempo consigam se reconectar com essa sociedade brasileira em forte transformação.

Este último ponto é fundamental, porque descarta, desde logo, uma série de velharias responsáveis pela ruína econômica e política dos últimos anos.

A centro-esquerda moderna deveria:

a) repudiar todas as doutrinas de fechamento ao mundo, à novidade, à competição, ao diferente, ao estrangeiro, ao imigrante;

b) bater-se contra todo corporativismo que estabeleça semicastas e privilégios na relação com o Estado;

c) sacralizar o ensino básico como mecanismo de emancipação de milhões de brasileiros presos à armadilha intergeracional dos baixos salários;

d) compensar os cidadãos que não conseguem, a despeito do esforço pessoal, alcançar padrões mínimos de bem-estar;

e) assegurar o equilíbrio das contas públicas;

f) ser amiga dos intelectuais, dos técnicos e do conhecimento embasado, capaz de guiar a política pública pelos melhores caminhos;

g) cobrar mais impostos de quem pode pagar mais;

h) valorizar o papel da polícia e da prisão para o atingimento da paz social;

i) compromissar-se com a decência e a humildade na vida pública;

j) banir o caciquismo e o mandonismo da rotina partidária.

Contra o Partido Conservador antenado aos novos tempos, um Partido da Abertura antenado aos novos tempos. Esse embate conferiria dinamismo ao desenvolvimento nacional no correr deste século.

A social-democracia pode se reinventar no Brasil. A adesão agora custa uma pechincha, mas o benefício está distante. Quem se arrisca? 


Vinicius Mota é secretário de Redação da Folha.

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