Descrição de chapéu Perspectivas

Teatro documental exercita a arte de reescrever a história

Dramaturgos questionam versões oficiais dos fatos e expõem visões ideológicas

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Luciana Romagnolli

Por maiores que tenham sido os esforços para criminalizar arte e artistas no Brasil pós-2016, sob falsas acusações que vão de pedofilia a usurpação de dinheiro público pela Lei Rouanet, manipulando o medo e a ignorância de grande parte da população em relação à arte contemporânea, o teatro insiste como espaço crítico do presente e do passado, ao indagar de que maneira a história nos tem sido contada. 

Existe uma cena teatral com força crescente no Brasil e em outros países que se baseia no uso de arquivos de imagem, som e documentos, oficiais ou não, para apresentar uma narrativa revista do passado, que inclua novas perspectivas. Principalmente aquelas abafadas por opressões de um sistema colonial, patriarcal e escravista.

Esse teatro documental de caráter historiográfico chama para si a responsabilidade de indagar as versões oficiais, com o desejo de reinscrever vozes e corpos apagados. O gesto é de expor os modos como a ideologia dominante se constituiu, suas parcialidades e exclusões.

Cito alguns poucos exemplos dentre as várias rotas de contestação traçadas nos palcos nos últimos anos. Em “A Invenção do Nordeste”, o grupo Carmin, de Natal (RN), expõe os meandros da constituição de uma região estratégica para o Brasil, opondo-se à construção de uma identidade folclorizada e, de quebra, à xenofobia. 

“Há Mais Futuro que Passado”, dirigida pela carioca Daniele Avila Small, questiona a dominação masculina da narrativa da história da arte, e recompõe, por meio de cartas, um breve inventário de artistas latino-americanas. 

mulheres olham documentos segurando lanterna
Clarisse Zarvos, Cris Larin e Tainah Longras na peça “Há Mais Futuro que Passado”, dirigida por Daniele Avila Small - Nityama Macrini/Divulgação

De Portugal, “Museu Vivo de Histórias Pequenas e Esquecidas”, do Teatro Vestido, que já esteve em Belo Horizonte e Santos, reconta décadas de história ditatorial lusitana pelas vivências dos cidadãos comuns.
Não à toa, os exemplos reclamam à história oficial a inclusão das mulheres, dos nordestinos, dos anônimos e de outros excluídos.

Por consequência, tais peças defrontam as fragilidades de noções como verdade, autenticidade e realidade. Nada mais propício nestes tempos estranhos em que uma mentira escrita em letras grandes e justaposta a uma imagem editada —o meme— consegue se infiltrar em milhares de casas e interfere nos rumos de uma eleição presidencial.

Entre as distorções mais assustadoras que têm emergido na esfera pública, estão a atenuação ou a negação do terror da ditadura civil-militar e da escravidão. Discursos que até poucos anos atrás não encontravam condições de existência na vida pública brasileira agora ressoam em brado retumbante.
Nesse sentido, é de se pensar que sofremos de uma espécie de revisionismo “a-histórico”.

A negação da história do Brasil, como negação de seus episódios definidores e estruturantes, avoluma um tsunami de desinformação e manipulação das narrativas. Uma inversão capaz de cravar como fake news a própria verificação jornalística que desmente fake news.

Isso acirrou a disputa de significados, legitimações e poderes no território das palavras. Está mais evidente do que nunca que, se não dissermos, por exemplo, que a invasão de Pedro Álvares Cabral iniciou o genocídio indígena, criam-se condições de existência para discursos contra os direitos das populações indígenas às terras que elas ocupam desde muito antes de 1500.

Sejamos artistas, políticos, historiadores ou público, precisamos encarar a aparente contradição entre, de um lado, uma reescrita da história pautada pelo ato ético contra o apagamento dos sujeitos subalternizados e, do outro, a manipulação da ignorância política, do medo e do ódio à diferença que sustenta ofensivas contra a arte, a educação e, consequentemente, a própria história.

A crítica norte-americana Carol Martin compara os modos de circulação de documentos nas mídias sociais e no teatro e encontra semelhança lógica entre o algoritmo, que circunscreve uma bolha pessoal de (des)informação, e o teatro, que apresenta uma versão da história a partir da montagem de documentos selecionados e reordenados segundo afetos e visões de mundo dos artistas.

Uma referência internacional desse teatro é o encenador libanês Rabih Mroué, que esteve na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo em 2017. Na peça-palestra “Revolução em Pixels”, ele coloca a questão de como conhecer acontecimentos que não testemunhamos diretamente, usando fontes tão pouco verificáveis quanto os arquivos de vídeo postados no YouTube mostrando supostos assassinatos de integrantes da resistência síria por snipers.

Quando as fontes oficiais perdem a credibilidade porque ocultam e deturpam documentos, em que(m) podemos confiar para obter informações? A prática com a qual o teatro documental melhor responde a essa pergunta é um modo de produção baseado na transparência do manejo dos materiais, dos processos de seleção, edição e montagem das informações.

Daí a importância de o teatro documental afirmar o caráter construído das verdades, expor sua feitura e problematizar suas escolhas. Eis uma ética da transparência dos meios e dos modos coerente com uma busca por caminhos comprometidos com os direitos humanos, a democracia e a justiça social.

Assim o teatro coloca, na arena pública de debate, perspectivas distintas das consagradas, requerendo dos espectadores-cidadãos um exercício crítico —justamente o que tem faltado diante de memes e fake news. 


Luciana Romagnolli é jornalista e crítica de teatro.

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