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Romances sobre o 'brexit' se arriscam ao ficcionalizar o presente

Escritor reflete sobre tensões entre fato e ficção na produção literária contemporânea

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“Literatura é novidade que permanece novidade”, escreveu Ezra Pound (aqui na tradução de Augusto de Campos, ed. Cultrix) em seu “ABC da Literatura”, publicado pela primeira vez em 1934. Nem se avistava no horizonte, àquela altura, esta nossa época de incessante ruído informacional, quando parece tão difícil a uma história —seja ela factual ou fictícia— atrair mais do que alguns segundos de atenção.

O poeta americano aludia a certo caráter reflexivo que tornava a ficção, em particular, o lugar de sedimentação das grandes questões humanas —mesmo que os “fatos” ali narrados tivessem prazo de validade.

Mas o que será dos romances —como linguagem capaz de refratar os eventos da vida contemporânea, deixando-os decantar como eterna “novidade” para sucessivas gerações de leitores— se seus autores passarem a, por assim dizer, correr atrás da notícia? (Em uma tradução alternativa, a máxima de Pound poderia, quem sabe, falar exatamente disso: “Literatura é notícia que não deixou de ser novidade”.)

O Reino Unido, tido como berço do romance moderno, tem sido ultimamente campo de testes para romancistas dispostos a tomar como matéria-prima o presente —no caso britânico, dias turbulentos em que pouco se fala de outra coisa que não seja a saída do país da União Europeia, o chamado “brexit”.

homem tira estrela da bandeira da União Europeia
Mural pintado por Banksy em Dover, cidade portuária inglesa que concentra comércio com a Europa - Glyn Kirk/AFP

A leva de romances que tangenciam o tema ou que tratam diretamente dele inclui a tetralogia da autora escocesa Ali Smith (com dois dos romances, “Autumn” e “Winter”, já publicados e o terceiro, “Spring”, saindo do forno em março, pouco antes da data-limite para a efetivação do divórcio entre britânicos e europeus); “The Cut”, breve (e brilhante) narrativa escrita sob encomenda por aquele que talvez seja o escritor contemporâneo que melhor enfrenta os dilemas da Inglaterra profunda, Anthony Cartwright; e o preferido deste resenhista, “Middle England”, do veterano Jonathan Coe (nenhum dos livros tem previsão de publicação no Brasil).

Foi o próprio Coe quem, em artigo recente no caderno de livros do jornal The Guardian, chancelou a alcunha pela qual já tem sido chamado o conjunto dessa produção: “brexlit”, tendência que outro resenhista chegou a definir como “experimento editorial deliberado”, descrevendo-o ainda como uma espécie de concurso para ver que autores são capazes de incluir em seus livros os eventos mais recentes.

Coe alertou também para o perigo maior a rondar esse tipo de ficcionalização da história tão colada ao presente: errar na interpretação de acontecimentos ainda em curso.

De um ponto de vista evolutivo, porém, o romance se renova na pena de seus melhores praticantes atuais para enfrentar uma questão que, historicamente, foi decisiva já na constituição do gênero, na primeira metade do século 18: precisamente a distinção entre os discursos jornalístico (“news”) e novelístico (“novel”).

Só que, com o tempo, o sinal se inverteu em relação ao que o romance idealmente almejava em suas origens: “O editor julga que o relato seja uma história fiel de fatos; nem existe nela qualquer aparência de ficção”, anunciou Daniel Defoe no prefácio ao primeiro volume das aventuras de Robinson Crusoé, personagem a quem delegava também a própria autoria dos livros, como garantia extra de fidelidade factual.

Um aspecto fundamental dessa distinção “news”/“novel”, nos primórdios do romance, é o que a professora Sandra Guardini Vasconcelos, autora de “Dez Lições sobre o Romance Inglês do Século 18” (Boitempo), chama de “senso de compromisso” com o leitor, a quem o autor, a exemplo de Defoe, dirigia frequentes reverências, em um “processo de construção [do gênero] compartilhado igualmente por produtores e consumidores”.

Em “Henry” (1795), o dramaturgo e romancista Richard Cumberland mistura ao enredo ficcional este tipo de reflexão metaliterária:

“É uma correspondência muito sagrada aquela que se estabelece entre a mente do autor e a mente do leitor; não é como a relação ligeira e casual que mantemos com nossos familiares e conhecidos, quando qualquer prática serve para preencher alguns poucos minutos sociais e fazer urrar a mesa, [mas] resultado de pensamento bem digerido, de sentimentos pelos quais devemos conservar ou perder a reputação [...].”

Os pioneiros do romance, conclui Vasconcelos —mas a observação não cairia mal para os expoentes da “brexlit”— “descobriram, cada um a seu modo, uma maneira de explorar os limites novelísticos dessa relação entre fato e ficção e encontraram formas de escrever sobre o mundo simultaneamente inventivas e referenciais”.

Pode-se pensar que desde sempre, hoje talvez mais do que nunca, romances estão aí para evitar que aquilo que mais alto fizer "urrar a mesa" —o último tuíte histérico de um Trump ou Bolsonaro a criar alvoroço na reunião familiar de domingo— tenha a palavra final. 


Christian Schwartz, doutor em história social (USP/Cambridge), é jornalista e tradutor.

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