Prisioneiro político da União Soviética relata tempo no cárcere

'A Luva, ou KR-2' é o último volume da série 'Contos de Kolimá', que a editora 34 lança em junho

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Varlam Chalámov

[SOBRE O TEXTO] Esta página traz um trecho de “A Luva, ou KR-2”, sexto e último volume da série autobiográfica “Contos de Kolimá”, do autor que passou quase 20 anos como prisioneiro político em campos de trabalho forçado na União Soviética. A editora 34 lança a obra em junho.

lobo sob neve e pessoas presas a roda
Ilustração - Lívia Serri Francoio

Liócha Tchekánov, lavrador de origem, técnico formado em edificações, foi meu vizinho de tarimba na cela 69 da prisão de Butirka durante a primavera e o verão de 1937.

Assim como a muitos outros, eu, sendo o monitor, prestei os primeiros socorros a Liócha Tchekánov: dei-lhe a primeira agulhada, uma injeção de ânimo, esperança, sangue frio, raiva e amor-próprio, um composto medicinal complexo, indispensável a um homem na prisão, sobretudo um novato. Os criminosos expressam esse mesmo sentimento —eles não podem negar uma experiência secular— em três mandamentos conhecidos: não creia, não tema e não peça.

O espírito de Liócha Tchekánov se fortaleceu, e em julho ele partiu para os pontos extremos de Kolimá. Liócha fora condenado no mesmo dia que eu, condenado pelo mesmo artigo a uma pena idêntica. Fomos levados para Kolimá no mesmo comboio.

Nós avaliamos mal a astúcia do comando: de paraíso terreno Kolimá devia transformar-se, antes da nossa chegada, num inferno terreno.

Fomos levados para morrer em Kolimá, e a partir de dezembro de 1937, abandonados aos fuzilamentos de Garánin, aos espancamentos, à fome. As listas de fuzilados eram lidas dia e noite.

Todos os que não morreram na Serpantínnaia, a prisão de inquérito da Administração de Minas onde fuzilaram dezenas de milhares sob o ruído de tratores em 1938, foram fuzilados de acordo com as listas que eram lidas diariamente, sob orquestra, sob fanfarra, duas vezes ao dia durante as revistas, nos turnos do dia e da noite.

Depois de sobreviver por acaso a esses acontecimentos sangrentos, eu não escapei do destino a mim reservado ainda em Moscou: recebi uma nova pena de dez anos em 1943.

Eu “nadei” até o fundo uma dezena de vezes, vagando da área de extração ao hospital e vice-versa, e perto de dezembro de 1943 caí num pequenino serviço, que construiu uma nova lavra, a “Spokóini”.

Os capatazes, ou encarregados, como são chamados em Kolimá, eram para mim pessoas da mais alta classe, com uma missão especial, um destino especial, cujas linhas da vida não podiam se cruzar com as minhas.

Nosso capataz foi transferido para algum lugar. Cada detento tem um destino que se entrelaça com as lutas de forças superiores. O homem-detento ou o detento-homem, sem saber disso, torna-se arma de uma luta que lhe é estranha e perece sabendo de quê, mas não por quê. Ou então sabe por quê, mas não sabe de quê.

Então, conforme as leis desse destino misterioso, nosso capataz foi retirado e transferido para algum lugar. Eu não sei, e também não precisava saber, nem o sobrenome do capataz, nem a sua nova função.
Para a nossa brigada, onde havia ao todo dez dokhodiagas, foi designado um novo capataz.

Kolimá, mas não apenas Kolimá, é diferente pelo fato de que lá todos são chefes, todos. Até uma pequena brigada de dois homens tem o mais antigo e o mais novo; apesar da universalidade do sistema binário, as pessoas não são divididas em partes iguais, e mesmo duas pessoas não constituem partes iguais. Para cinco pessoas destaca-se um chefe de brigada permanente, que não está livre do trabalho, claro, pois é igualmente um rabotiaga. Mas numa brigada de cinco homens sempre aparece um chefe livre, isto é, com um pau.

Você vive, pois, sem esperanças, e a roda do destino é incompreensível. 


Varlam Chalámov foi um escritor e jornalista russo (1907-1982).

Tradução de Nivaldo dos Santos, mestre em letras russas pela USP e professor de russo na Unicamp, e Francisco de Araújo, tradutor e intérprete.

Ilustração de Lívia Serri Francoio, animadora e ilustradora.

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