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'Abaporu' pertencer a museu argentino é bom para arte brasileira

Pintura icônica de Tarsila do Amaral está de visita para mostra em cartaz até o fim do mês no Masp

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Daniel Rangel

Desde 2008, quando foi visto numa exposição realizada na Pinacoteca do Estado, “Abaporu” (1928), pintura de Tarsila do Amaral que pertence ao Malba (Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires), não visitava São Paulo. 

A obra está de volta a sua cidade natal e é uma das estrelas da exposição “Tarsila Popular” (em cartaz no Masp até o próximo dia 28), que traça um panorama da produção da artista, buscando “enfatizar seus personagens, temas e narrativas”, segundo o curador Fernando Oliva. 

“Abaporu” é considerado “um marco da pintura antropofágica” e inspirou Oswald de Andrade e Raul Bopp a criarem o movimento homônimo, como observa a curadora Regina Teixeira de Barros. 

O conceito antropofágico tornou-se um norteador para os modernistas, na utópica busca pela criação de uma possível identidade brasileira. Uma antropofagia que absorveu, incorporou e ressignificou influências ocidentais europeias e assimilou, ao mesmo tempo, os temas e cores locais, provindos sobretudo de culturas populares de nosso país. 

“Abaporu” e “A Negra”, outra obra em exposição no Masp, que pertence ao MAC-USP, foram consideradas metaforicamente como “o pai e a mãe” dessa cultura miscigenada, difundida pelos artistas modernos. 

Neste contexto, a produção de Tarsila foi uma das mais rigorosas e criativas. Ela se esforçou constantemente em revelar uma visualidade originalmente local.

Suas obras retratam as cores, as formas, a fauna, a flora, as pessoas e as tradições culturais do Brasil da primeira metade do século 20, caracterizadas pelo traço fluido singular que se tornou marca inconfundível de sua linguagem. Uma originalidade que pode ser percebida na produção de grandes mestres da arte, como Miró, Picasso e Matisse, donos de obras formalmente únicas. 

Devido à inegável importância histórica da tela e da artista, muitos brasileiros lamentaram a venda, anos atrás, para o colecionador argentino Eduardo Constantini, presidente e criador da fundação que é responsável pela gestão do Malba. 

Os descontentes argumentaram que a obra é o principal símbolo da produção de Tarsila e que nunca deveria ter deixado o país. Reclamaram que “algum rico brasileiro” deveria ter adquirido a pintura. Para os mais ufanistas, o governo, por meio do Iphan, penso eu, deveria ter impedido o que seria uma “desapropriação do patrimônio nacional”. 

Já eu acredito que “Abaporu” encontrou seu lugar ideal na coleção do Malba, assim como “A Lua”, outra tela de Tarsila, que foi recentemente vendida ao MoMA de Nova York. 

A internacionalização da arte brasileira é uma estratégia fundamental para a inserção de artistas, curadores e outros agentes culturais do país no circuito internacional e gera uma inerente valorização mercadológica da produção local. 

homem olha quadro abaporu
Visitante da exposição do Masp observa ‘Abaporu’, tela feita por Tarsila em 1928  - Nelson Antoine/Folhapress

Além da célebre pintura de Tarsila, o Malba é detentor de obras dos brasileiros Di Cavalcanti, Candido Portinari, Maria Martins, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Augusto de Campos, Antonio Dias, Tunga, entre outros. 

E também de artistas centrais de outros países latino-americanos, como Joaquín Torres-García, Fernando Botero, Diego Rivera, Antonio Caro, Frida Kahlo, Francis Alys, Luis Camnitzer, León Ferrari, Wifredo Lam, Jorge Macchi e muitos outros. Uma coleção consistente, que representa com grande qualidade a arte produzida na América Latina, da qual o Brasil faz parte, apesar de muitas vezes nos esquecermos disso.

O Museu de Houston, no Texas, é outro que detém um importante acervo de arte latino-americana do século 20, incluindo uma bela coleção com obras brasileiras adquiridas de um colecionador particular. 

Na época, as críticas a essa venda foram parecidas com as dirigidas à transação envolvendo “Abaporu”, mas os efeitos positivos já são evidentes. Além da inserção no sistema internacional, o Museu de Houston vem realizando e financiando pesquisas a respeito das obras e dos artistas brasileiros que integram sua coleção, o que contribui para uma melhor compreensão da nossa própria linhagem artística.

A partir de investigações técnico-científicas, por exemplo, realizadas em uma obra visualmente monocromática de Oiticica, da série “Relevos Espaciais” (1960), descobriram-se oito camadas de distintas cores, tintas e químicos que foram utilizadas na composição da cor visível. Uma técnica clássica da pintura utilizada desde o Renascentismo, mas que não sabíamos, até então, que era praticada pelo artista carioca.

Reflito novamente acerca de Miró, Picasso ou Matisse. Se suas obras ficassem restritas aos museus e às coleções espanholas ou francesas, eles seriam considerados mestres universais? Não creio, pois o fato de serem intitulados assim passa por um reconhecimento global, ocasionado pela inerente difusão universal de seus trabalhos.

Os grandes artistas brasileiros possuem trabalhos com a qualidade técnica e a potência temática dos grandes artistas de reconhecimento internacional —e Tarsila tem tudo para conseguir atingir esse patamar. 

Felizmente, existem muitas pinturas e desenhos da artista em coleções públicas brasileiras, e creio que não deixaremos de contar com as referências da pintora por aqui. Mas será que se “Abaporu” nunca tivesse saído do país, continuaria sendo considerada como a mais conhecida e icônica obra de Tarsila?  

Talvez sim, talvez não, mas o fato é que se trata de um grande prazer termos a possibilidade de rever a obra mais uma vez, nem que seja por uma “temporada de férias”. 

Como aquele ente amado que mora fora do país há muitos anos, possui ótimo emprego em uma instituição internacional, convive com boas companhias, mas volta de vez em quando pra passear. Sem dúvida, sentimos saudade, mas precisamos admitir que aqui já não é o seu lugar. As obras de arte não possuem fronteiras, pertencem ao mundo. 


Daniel Rangel é curador e mestrando em poéticas visuais pela ECA-USP.

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