Sonho dos modernistas para o Brasil virou pesadelo, diz autor

Projeto que mescla de preservação da natureza e reinvenção pela cultura perdeu vez no debate público

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Pedro Duarte

[RESUMO] Projeto de país sonhado por artistas e intelectuais desde o modernismo, numa mescla de preservação da natureza e reinvenção pela cultura, perdeu vez no debate público brasileiro com a ascensão de ideologia arcaica, autoritária e anti-intelectual nos últimos anos.

Queimadas incendeiam a Amazônia. Incêndio queima o Museu Nacional. Cortes de verba e declarações de autoridades explicitam que a ciência, a educação e a própria inteligência estão sob ataque. Estamos perdendo um Brasil ou, ao menos, um projeto de Brasil há muito sonhado por poetas, artistas e intelectuais.

Oswald de Andrade, no modernismo dos anos 1920, afirmara no Manifesto Pau-Brasil, letra por letra: “A floresta e a escola”. E completava: “O Museu Nacional”. Essa é a base ameaçada hoje. Ou seja, o que se está eliminando não é o futuro em si, mas a melhor ideia de futuro que nosso passado já teve.

Obra do artista Emmanuel Nassar, é uma bandeira do Brasil dividida em 9 retângulos que estão embaralhados
"Bandeira" (2000), de Emmanuel Nassar - Reprodução

Juntar a floresta e a escola era um projeto civilizatório. Significava preservar uma natureza pela qual o país identificou a si próprio com uma educação que se apropriaria do modelo de origem europeu. Combinava-se espontaneidade do coração afetivo com trabalho do espírito racional, algo como “trópicos utópicos”, de acordo com a expressão de Eduardo Giannetti.

Doces e práticos, seríamos um experimento singular de humanidade. De modos diversos, a cultura brasileira foi atravessada por sonhos de construção desse tipo de identidade, desde o modernismo até o tropicalismo, desde Mário de Andrade até Caetano Veloso.

No final de 2018, aqueles que ainda partilhavam desse sonho foram despertados agressivamente. O processo de redemocratização do país, embora falho, foi norteado por presidentes da República cujas biografias eram marcadas pela luta contra a ditadura militar instalada em 1964.Fernando Henrique Cardoso, sociólogo exilado. Lula, sindicalista combativo. Dilma Rousseff, guerrilheira. 

Pela primeira vez, agora temos um presidente tão simpático à ditadura e à tortura quanto avesso à cultura. 

Cultura não é apenas um nicho do Estado, evidentemente. Até nesse sentido, porém, os nomes que passaram por esse ministério entre 1995 e 2015 foram, em geral, também marcados pela vida democrática, de Francisco Weffort a Juca Ferreira.

E davam continuidade, a seu modo, às imagens de Brasil sonhadas por aquele passado de extração modernista. Combinavam o apreço à cultura e à inteligência ao espírito republicano de igualdade. Mantinham viva essa ideia de Brasil, ao mesmo tempo que avançavam em uma espécie de política social-democrata.

Foi emblemática a nomeação de Gilberto Gil para a pasta da Cultura. Se a avaliação pragmática de sua gestão é em si positiva, há também o aspecto histórico. Gil não é só um compositor e cantor excepcional. Foi exilado pela ditadura e foi figura central do tropicalismo, que atrelara a música a um pensamento de país. Foi sua voz que cantou “Geleia Geral”, de Torquato Neto. Gil no ministério não deixava de ser, como as pichações do final dos anos 1960 pediam, a imaginação no poder.

O poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia. Eis como podia parecer o negro baiano que mistura psicodelismo e tecnologia assumindo o ministério. O Brasil se esforçava por efetivar em realidade social a ideia elaborada pelo melhor de sua arte. Na geleia geral brasileira, a cultura popular —o Carnaval, o bumba— encontraria a modernidade midiática e acolheria um disco de Sinatra. Ou, atualizando a equação, Mangueira e internet, Chico e Anitta. É tudo a mesma dança. 

Já se disse que o Brasil precisaria fazer por merecer a bossa nova. A julgar pelos que ocuparam lugares de poder no processo de redemocratização desde os anos 1990, parecia que tínhamos a chance de, finalmente, estar à altura desse desafio. O tropicalismo era admirado por João Gilberto, o mestre da bossa nova, e um de seus criadores estava no Ministério da Cultura. Claro que não era um idílio sem contradições e problemas graves. O país parecia, porém, reencontrar o que fora cortado pela ditadura.

Gil, como uma espécie de Mário de Andrade do século 21, simpático à tecnologia, efetivou em sua gestão os Pontos de Cultura. Eles abandonavam o elitismo da hierarquia entre alta e baixa cultura —que, mesmo bem intencionado, só leva uma à outra. Era a hora de oferecer condições materiais para a produção e circulação artística, sem condescendência. O pensamento era que a cultura não é luxo, é projeto de país. Que pode estar alojada em um ministério, mas na vida atravessa tudo. O sonho modernista da cultura como fundação do país ainda era sonhado.

Repare-se, contudo: esse é um tipo de sonho. Desde 2016 e, com mais intensidade, desde a eleição de Jair Bolsonaro, outro tipo de sonho, que também existe no Brasil, deu as caras, como em momentos anteriores da história. É um sonho arcaico, autoritário, violento, anti-intelectual. Talvez um pesadelo. 

Mas também é um sonho de Brasil. De ordem e de progresso. Inscrito na bandeira. O que se iniciou em 2019 não foi a ruptura com o PT, embora a repulsa ao partido tenha sido decisiva, mas com a tendência política dominante na redemocratização desde o PSDB.

É claro que alguns atores políticos, tanto de PT quanto de PSDB, contribuíram, à revelia de suas intenções ou não, para esse rompimento. Nada se gesta apenas de fora para dentro. Dificilmente hoje alguém ainda ostentaria os egoístas adesivos que diziam: “a culpa não foi minha, eu votei em fulano”. Na barafunda em que nos metemos, sobrou para quase todo mundo.

No fim, o arranjo de equilíbrio mínimo —“lulismo”, para André Singer; “peemedebismo”, para Marcos Nobre; “presidencialismo de coalizão”, para Sérgio Abranches— foi quebrado. Como Fernando Collor em 1989, Bolsonaro nem tem enraizamento partidário relevante.

O rompimento, porém, aconteceu pela via eleitoral. Não foi um golpe, como houve em 1964. É verdade que Lula —segundo pesquisas, o principal concorrente do presidente eleito— não pôde se candidatar por estar preso, em um processo controverso liderado pelo então juiz Sergio Moro, que se tornaria ministro do novo governo (em um aceite eticamente nefasto).

Mesmo assim, outros candidatos estavam no páreo. E o mais votado foi o truculento Bolsonaro. Houve um clamor popular e apoio social na virada que põe em perigo a democracia liberal progressista.

Pode-se apontar, é claro, o quanto as distorções midiáticas e o quanto a manipulação pelas redes sociais tiveram influência nas últimas eleições do país e de boa parte do mundo. Deve-se frisar, como fez o colunista da Folha Antonio Prata recentemente, a falha de um jornalismo que não chama as coisas pelos seus nomes: o presidente dá declarações autoritárias que são qualificadas como enfáticas e faz afirmações mentirosas chamadas de polêmicas. 

Essas distorções não devem nos fazer perder de vista, porém, que Bolsonaro —não só ele em si, mas o que ele representa— diz algo do Brasil que é real, verdadeiro, profundo, e, por isso, perigoso.

O Brasil de verdade não é só o que me agrada, mas também o que me horroriza. Não é só Darcy Ribeiro e a universidade. É também Ustra e tortura. Não é só projeto democrático, é insistência fascista. Não é só poesia e pensamento, mas censura e perseguição. Para entender isso, não bastam dados econômicos. Ironizando a frase famosa, digamos: é a cultura, estúpido! Ou é falta dela.

Ninguém parece ter escutado melhor que Bolsonaro os motivos dos deputados para votar a favor do impeachment de Dilma. O Brasil deles era família e Deus, ou melhor, a família tradicional heterossexual e o Deus monoteísta evangélico. Não era um Brasil de floresta e de escola ou do Museu Nacional, dos modernistas e tropicalistas.

Mas, ainda assim, era o Brasil. Um Brasil que insiste, que persiste. Nossas queimadas, por exemplo, eram criticadas desde o século 19. José Bonifácio falava do insulto à natureza, desse crime horrendo que nos deixaria sem ter o que dizer no tribunal da razão. Em 1936, Sérgio Buarque de Holanda volta ao assunto: aponta o prejuízo para a fertilidade do solo e, numa consciência ecológica singela, para a construção dos ninhos dos pássaros. 

O método das queimadas revelaria a atitude de curto prazo num aproveitamento da natureza pouco afeito ao empenho laborioso. O seu ideal é colher o fruto sem plantar a árvore. Esse Brasil nunca deixou de existir. Mas agora ele está de volta com tudo. E, dizem, chega de “mimimi”.

Essa expressão —chega de “mimimi”— é sintomática. Não se aceita a complexidade de nada. O estilo direto e rude que caracteriza a fala do atual presidente, quer dizer, curto e grosso, faz sucesso justamente por causa disso. Nele, não há voltas. 

Sua preferência por tuítes para se comunicar faz todo sentido: 140 caracteres o beneficiam. Mais seria prejudicial. Não por acaso, fugiu dos debates eleitorais. O seu procedimento é perfeito para o mundo da “lacração”, afinal nada no seu discurso se abre, tudo apenas se fecha. Lacra. Esqueçam os “poréns” e os “todavias”. Não há “entretanto” ou “mas”. Chega de “mimimi”. E tome foto com as mãos fazendo gestos de armas. Violência. Eis o novo velho Brasil. 

Não é difícil perceber que vivemos à sombra do diagnóstico que a pensadora Hannah Arendt elaborou no começo dos anos 1960 sobre a “banalidade do mal”. Sua hipótese era que a origem do mal às vezes podia se situar não na malignidade subjetiva interior de alguém, mas na simples recusa para pensar o sentido do que se faz. 

No entanto, essa banalidade do mal, tal como encontrada no nazismo, por exemplo, era inconsciente de si. O indivíduo era tomado pela banalidade, e só. Hoje, o que vemos é o orgulho da banalidade. Ela é ostentada positivamente. Ser estúpido virou moda. Pega bem. Estamos na época do elogio da burrice.
Por isso, todo pensamento é suspeito. Por isso, arte e cultura, assim como ciência e educação, são secundárias, perseguidas, limitadas e censuradas: desde quadrinhos na Bienal do Livro até a atividade docente. Quem pensa pode vir a desobedecer, como observa o filósofo Frédéric Gros. 

Não se suporta, por isso, a crítica —e ela é o fundamento do republicanismo. Immanuel Kant, o iluminista do século 18, já ensinara que nada na vida moderna deveria sobreviver sem passar pelo crivo da crítica. O atual governo é, nesse sentido, antimoderno. Tem e faz muitos inimigos. O maior deles, porém, não é um partido ou personalidade. É o pensamento, onde quer que esteja. Não deseja liberdade, mas obediência.

O historiador carioca Luiz Antonio Simas foi agudo ao escrever que, sob o disfarce de contestar o legado comunista da Revolução Russa, o que o atual governo de fato não suporta é a herança iluminista da Revolução Francesa. É o legado da “escola”, ou seja, da educação, da ciência, da pesquisa, da universidade. Da crítica. 

E, de outro lado, também a “floresta” é destruída, assim como aqueles que a conhecem como ninguém, os índios. Pois a pluralidade aqui não tem vez. Esse sonho de Brasil é fechado e exclusivista: ame-o ou deixe-o. Por isso, ataca as ideias de um Brasil diverso e misturado, sem identidade racial ou sexual estável. 

Países são feitos de história, mas também de imaginação. São feitos de fatos, mas também de sonhos. Talvez jamais tenhamos sido doces e práticos. Certamente, a democracia racial foi um mito. No Brasil de hoje, os conflitos se escancararam e a ambiguidade cordial se dissipou, a despeito da confusão de ritos vazios no direito e palavras cínicas no governo. 

Esse parece ter sido um dos saldos das manifestações de 2013, como tem pontuado Francisco Bosco. Desfez-se a perversa mistura de afeto e poder simbolizada na proximidade física, da qual os brasileiros se orgulham, mas que permite tanto um afago quanto um tapa. O rei agora está nu.

Isso poderia abrir espaço para uma política aguerrida e aberta. Contudo, por ora, parece ter ficado apenas a moralização que opõe os bons contra os maus; e, claro, sempre achamos que estamos do lado dos bons, ninguém se considera corrupto ou golpista. 

Ou então, ficou a violência mesmo. O tapa. O tiro. O Estado de Direito jogado para lá e para cá: reforçando a tese do filósofo Walter Benjamin, no século 20, de que o Estado de exceção é, na verdade, a regra; ou operando o que Achille Mbembe, no século 21, chama de necropolítica.

Não se trata, porém, de repetir pela enésima vez um retrato de país que, frustrada a autoimagem narcísica, constrói uma sociologia da depressão que só o define pela negatividade, pela carência, pela subtração. 

Nos anos 1960, com a ditadura, Caetano Veloso dizia que, ao contrário de amigos seus, sabia que o governo autoritário não tinha vindo de Marte. Era parte do Brasil. Mesmo assim, apostava nas forças regeneradoras do país. 

Precisamos delas de novo. O desfile da Mangueira —escola onde “o samba é mais puro”, como canta “Geleia Geral”— no Carnaval do Rio de 2019 foi uma prova de que elas existem. Contou a história que a história não conta. Buscou o Brasil que não está no retrato. E com alegria, apesar de tudo. Pois alegria é a prova dos nove, dizia Oswald. É coragem.

Em nosso presente, não está em disputa apenas o futuro, mas também o passado. Estamos escolhendo com qual nos identificamos, se o da floresta e da escola ou o das queimadas. Cada um deles representa um projeto distinto de futuro. 

Mas pode ser também que, dessa disputa, nasça algo radicalmente novo, que não é nem exatamente uma coisa e nem outra. Se o momento atual servir como catarse para que, ao invés de culparmos uns aos outros, haja responsabilidade política de todos, pode ser que tenhamos chance. Pois a história, como dizia Hannah Arendt, é sempre uma história sem nenhum fim, mas de muitos começos. 


Pedro Duarte é filósofo, professor da PUC-Rio e autor de “Tropicália” (Cobogó) e “A Palavra Modernista’ (Casa da Palavra).

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