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Músicas não movimentam mais o mercado, e sim a figura do artista

Pulverização do consumo musical matou a parada de sucessos e dificulta saber quais os hits do ano

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São Paulo

Durante décadas, o mercado fonográfico chegou a cada dezembro com algumas canções disputando a posição de melhor música do ano. As paradas de sucesso, divididas entre venda de discos e execução em rádio, cumpriam a tarefa de balizar a consagração de um artista ou banda a cada temporada.

Dezembro de 2019 é diferente. O cenário não mudou de forma abrupta; trata-se de um processo lento de eliminação de parâmetros. Mas é evidente que este ano pode ser marcado como o momento em que a parada de sucessos deixou de existir.

A cantora Anitta, de cabelo curto e rosa, vestindo uma roupa de plástico transparente que cobre com um T amarelo seus seios
Anitta no clipe de "eXplosion", lançado com o grupo Black Eyed Peas - Reprodução/YouTube

Na essência, o próprio produto sumiu do mercado. O artista não vende mais música, mas sua figura. Mais do que conhecer as canções lançadas por Taylor Swift ou Anitta, o desejo do fã é saber onde elas aparecem, como estão vestidas, quem está ao lado delas e qual declaração “bombástica” foi disparada naquele evento.

As aspas são necessárias. Nada mais pode ser “bombástico” num ambiente em que artistas publicam cada passo que dão —a mecânica de suas carreiras é justamente decidir o que vale a pena tornar público. Podem entrar aí coisas boas, como um novo casamento, ou agruras, como uma depressão. Real ou não.

Há tempos não se vende mais disco físico. A agilidade da veiculação digital, com acesso fácil e farto, tornou caduca a operação de comprar uma mídia musical que dependa de um aparelho em casa. A casa está reconstruída no celular de cada um.

Depois, acabou a venda digital de álbuns. A afirmação foi repetida à exaustão: “Ninguém tem mais tempo de parar por uma hora para ouvir um álbum inteiro”. A saída era buscar o single “chiclete”, capaz de fisgar um ouvinte em questão de segundos. Como essa ambição conformou um universo de canções muito parecidas e de qualidade duvidosa é tema para outra discussão.

Prova recente da falta de impacto de um álbum está em “Caravanas”, que Chico Buarque gravou em 2017, após um grande hiato. Assunto nas redes sociais nas semanas anteriores ao lançamento, graças a uma canção acusada de machista por seu eu lírico adúltero, o álbum, uma vez à venda, teve recepção branda e fugaz.

Agora, nem os singles digitais têm mais pertinência. As músicas são lançadas, pipocam nos celulares durante uma semana e somem.

Anitta e Alok, os brasileiros mais relevantes no mercado hoje, dentro e fora do país, lançaram vários singles neste ano. Não houve um período superior a dez dias sem que um deles soltasse música nova nas redes.

Eles, e outros nomes que tentam se aproximar dessa dupla de sucesso de massa, nem se preocupam mais em dar tempo para que a música seja consumida. A ideia é lançar uma faixa, ter milhões de views em poucos dias e partir para outra.

Nos últimos anos, Anitta só conseguiu um sucesso de longa rotatividade na mídia —“Vai Malandra”, single de dezembro de 2017 gravado com o parça MC Zaac e o rapper americano Maejor, com os produtores brasileiros Tropkillaz e DJ Yuri Martins. Mas o que fez a viralização acima de qualquer curva não foram as colaborações, mas, sim, o biquíni de fita isolante que ela “vestiu” no clipe caliente que acompanhou o single.

Antes e depois de “Vai Malandra”, Anitta gravou uma infinidade de singles de vida útil bem mais breve. Sucesso intenso e esquecimento rápido. O importante é manter nome e imagem na mídia, com lançamentos “picados”, e faturar nos shows.

O kit de exposição do artista engloba número de seguidores, fotos na rede, declarações calculadamente controvertidas, presença em eventos e shows —estes sendo o único item que ainda se relaciona com a música que o artista produz.

O resultado é chegarmos ao fim do ano sem conseguir listar com clareza quais são os melhores álbuns ou singles da temporada que se encerra. A morte da parada de sucessos vem diretamente da pulverização do consumo de música.

O artista que lota shows não é obrigatoriamente aquele tem mais canções nas infinitas playlists dos smartphones. Quem tem os clipes mais assistidos no YouTube pode não conseguir o mesmo desempenho em mídias mais antigas que preservam sua funcionalidade, como as rádios, alternativa de consumo musical ainda forte fora das grandes cidades.

Para ampliar a participação no mercado, a opção de colaboração em músicas de outros artistas já é lei. De preferência cruzando gêneros, para exportar o nome a outros nichos. Tome lá dupla sertaneja com cantor de pagode, cantora de R&B com sambista, rappers com jovenzinhos que apostam num folk pop brasileiro.

A ideia de grande hit acabou. Cada consumidor pode eleger seus favoritos entre vários singles extremamente parecidos, lançados em profusão. Neste caso, contudo, quantidade não garante qualidade.


Thales de Menezes, jornalista, atua como repórter nas áreas de música, cinema, literatura e HQ.

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