Moderação na política precisa insistir que regras do jogo valem a pena

Ameaçada por radicais e populistas, ideia sustentou construção de instituições democráticas

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Carlos Graieb

[RESUMO] O princípio de moderação na política, expulso da dinâmica partidária em vários países, vem sendo reabilitado por trabalhos acadêmicos como alternativa viável. Livros recentes indicam que a moderação não é sinônimo de centrismo e pode ser um antídoto ao dogmatismo e ao surgimento de salvadores da pátria.

Como recomendavam os filósofos antigos, ainda se busca a moderação em muitas coisas da vida. Aconselha-se comer, gastar, praticar esportes ou tomar sol com moderação. Poucos duvidam que o conselho é bom.

A moderação, no entanto, há tempos vem sendo expelida da política. Como estratégia de campanha, tem naufragado em eleições democráticas em vários lugares do mundo, diante de candidatos populistas ou radicais que polarizam as disputas. No intervalo entre eleições —esse período desgastante em que é preciso resolver problemas e realizar projetos— ela também é rejeitada como guia de conduta.

No Brasil, despreza-se a moderação como virtude dos tímidos, dos tépidos, dos chatos, daqueles que só sabem andar com passinhos miúdos em um país que precisa de soluções ousadas. À direita e à esquerda, o moderado pode ainda receber o rótulo de isentão: alguém que se omite diante do avanço do fascismo ou do comunismo (a depender de quem fala) em vez de se aliar aos justos.

Policiais cercam a Casa Branca durante protesto contra o assassinato de George Floyd - Olivier Douliery - 3.jun.2020/AFP

Por fim, em uma terceira crítica, moderação equivale a hipocrisia. É o disfarce da velha política para esconder sua verdadeira natureza, predadora em relação ao Estado. O “moderado” está sempre pronto a cometer patifarias, como diria Jair Bolsonaro, negociando o seu apoio em troca de benesses e nacos de poder.

Trata-se de uma causa perdida? Especialmente em língua inglesa, tem havido algum esforço intelectual para reabilitar a moderação como uma alternativa política viável. São livros de história e história das ideias como "Faces of Moderation" (rostos da moderação), de Aurelian Craiutu, "Democracy in Moderation" (democracia com moderação), de Paul O. Carrese, "Moderates" (moderados), de David S. Brown e "The Politics of Moderation in Modern European History" (a política da moderação na história europeia moderna), coletânea editada pelos holandeses Ido de Haan e Matthijs Lok.

Aurelian Craiutu é o mais prolífico dos estudiosos da moderação. Seu esforço para mostrar que existe uma tradição coerente de pensamento sobre essa “virtude elusiva”, que parte de Aristóteles e reúne nomes tão diversos quanto Michel de Montaigne, Montesquieu, Alexis de Tocqueville, John Madison, Albert Camus, Raymond Aron e Michael Oakeshott, engloba dezenas de artigos e os livros "A Virtue for Courageous Minds" (uma virtude para mentes corajosas, 2013) e "Faces of Moderation" (2017).

Craiutu afirma que a moderação deve ser estudada em três dimensões: como um traço de caráter, um estilo de ação política e um conjunto de arranjos institucionais.

Ciente da desconfiança sobre o valor dos moderados, Craiutu procura destilar a melhor essência do personagem a partir de perfis históricos. Ele abre "Faces of Moderation" com uma citação do escritor Albert Camus: “Nosso mundo não precisa de almas tépidas. Precisa de corações ardentes, de homens que entendem o espaço correto da moderação”.

Em vez de ser a busca de um meio-termo insípido entre extremos, a moderação, quando adequadamente entendida, é compatível com a paixão política e com o espírito combativo, além de estar associada a um tipo específico de sociedade aberta e plural. O elo entre a moderação e um conjunto de instituições políticas é revelado de maneira inequívoca pela análise histórica, diz Craiutu.

Por exemplo, nos artigos que James Madison, Alexander Hamilton e John Jay redigiram entre 1787 e 1788 para explicar a filosofia da Constituição dos Estados Unidos. Madison, em especial, insistiu que a pluralidade de ideias e “facções” buscada na democracia americana só poderia existir numa moldura institucional imbuída do espírito de moderação. Tal moldura prevê a separação de Poderes, o federalismo, a aprovação de leis em duas casas legislativas distintas e um sistema de revisão dos atos do governo pelo Judiciário.

Os ensaios de "The Politics of Moderation in Modern European History" mostram outras ocasiões em que a política da moderação tomou o centro do palco, do enfrentamento das guerras religiosas no século 16 às propostas de “terceira via” surgidas depois da queda da União Soviética, no século 20. Destaca-se o ensaio que mostra como a valorização das equipes de especialistas encarregadas de implementar e gerir políticas públicas ganhou impulso no fim da Segunda Guerra Mundial.

O historiador Camilo Erlichman sublinha o caso da Alemanha pós-nazismo, onde a ênfase na discussão das questões práticas ligadas à reconstrução “foi essencial para prover certa estabilidade sócio-política”. A rejeição das soluções doutrinárias, em favor de uma abordagem técnica e pragmática das questões de governo é um elemento constante na história da moderação.

Um outro grupo de livros, como "Moderates", de David S. Brown, e "Rule and Ruin" (norma e ruína), de Geoffrey Kabaservice, está voltado à história política americana. A preocupação de fundo é o sufocamento das vertentes moderadas nos dois grandes partidos americanos, o democrata e o republicano, e a ascensão das candidaturas populistas em eleições locais e nacionais.

O sucesso eleitoral de radicais nos Estados Unidos deve-se, em parte, a causas estruturais. O fato de o voto não ser obrigatório tem um efeito colateral ruim: como os eleitores mais ideológicos são mais mobilizados e costumam comparecer mais às urnas, há um incentivo para que os políticos moldem seu discurso nessa direção. Em segundo lugar, dominar as estruturas partidárias em um país onde só há duas grandes legendas pode levar à efetiva redução da variedade no espectro político.

Kabaservice faz um estudo detalhado de como os republicanos moderados perderam espaço no partido a partir dos anos 1960 e, na maioria das vezes, simplesmente se calaram na política. Nesse ponto é significativo o contraponto com o Brasil, que tem voto obrigatório e uma hiperfragmentação política.

A polarização das eleições de 2018 no Brasil seguiu linhas ideológicas, mas não partidárias. O mesmo deve acontecer em 2022. Embora o PT continue sendo o centro de gravidade da esquerda, as feridas sofridas na Lava Jato atiçaram o desejo de protagonismo de legendas vizinhas. Jair Bolsonaro pegou carona no PSL para disputar as eleições de 2018. Venceu e logo quis ter o seu próprio partido, que será o bunker do bolsonarismo, mas talvez não da direita como um todo.

Ao contrário dos Estados Unidos, não há nada que estruturalmente dificulte ou impeça o surgimento de outras opções eleitorais no Brasil. No final de 2019, cinco partidos (DEM, Solidariedade, PL, Avante e Progressistas) lançaram a plataforma digital Centro, o Brasil em Movimento, que pretende requalificar esse espaço político. A iniciativa não ganhou tração até agora —e terá de limpar a palavra centro das manchas do fisiologismo e da corrupção ligadas ao centrão.

Moderação, como lembra Aurelian Craiutu, não é sinônimo de centrismo. Ela tem substância própria. Como estilo de atuação política, privilegia a civilidade, o diálogo e a autocontenção. Acredita em uma abordagem pragmática das questões de governo e não em verdades sagradas ou salvadores da pátria. Tem, por fim, um compromisso inarredável com o Estado de Direito —as regras do jogo.

Viria daí sua limitação? Uma pesquisa do Pew Research Center publicada em fevereiro mostra que 56% dos brasileiros estão insatisfeitos com a democracia. Ao contrário dos oponentes, populistas e autoritários de esquerda e direita, a política da moderação não tem outro caminho senão insistir que as regras do jogo continuam valendo a pena.


Carlos Graieb, jornalista, foi diretor de Redação do site da revista Veja e secretário estadual de Comunicação de São Paulo.

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