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Ótima biografia mostra atualidade de Keynes na crise do coronavírus

Lançado nos EUA, livro discute como keynesianismo se formou e se espalhou pelo mundo

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Jennifer Szalai
The New York Times

[RESUMO] Biografia recém-lançada nos EUA apresenta a trajetória do pensamento econômico de John Maynard Keynes e mostra como suas propostas foram ignoradas por governantes antes da Grande Depressão —e como, nas décadas seguintes, o keynesianismo se tornou a nova ortodoxia nos EUA e foi adotado em diversos países.

Está ouvindo isso? É o som da impressora de dinheiro funcionando, injetando trilhões de dólares em uma economia em colapso —o suficiente para fazer os resgates após a crise financeira de 2008 parecerem nada mais que alguns trocados.

“The Price of Peace” (o preço da paz), nova e excelente biografia intelectual de John Maynard Keynes escrita por Zachary D. Carter, funciona como um guia altamente relevante do nosso momento atual, apesar de Carter ter concluído o livro antes da Covid-19. É raro ver uma história econômica de 600 páginas avançar rapidamente, carregada pela lucidez e sagacidade, e essa é uma delas. (Nos agradecimentos, Carter elogia a biografia de Keynes escrita por Robert Sidelsky em três volumes.)

Carter começa o livro com uma história de amor e o encerra com uma explicação refinada de um "credit default swap" (CDS), e mesmo leitores sem formação em finanças vão aprender a apreciar o drama das duas coisas.

Retrato do economista John Maynard Keynes - National Portrait Gallery/Divulgação

As ideias, não importa quão abstratas sejam, sempre se originam na experiência vivida. Carter relaciona o desenvolvimento do pensamento econômico de Keynes ao meio social em que o economista viveu. Nascido em 1883, Keynes atingiu a maioridade em meio à experimentação boêmia do Grupo de Bloomsbury, trocando amantes e fofocas com um grupo de intelectuais e artistas que incluía Virginia Woolf e Lytton Strachey.

Os Bloomsberries podiam ser alternadamente mordazes, encorajadores, críticos e aduladores; seu “código de conduta radical e subversivo”, somado a um gosto refinado pela boa vida, moldou a abordagem de Keynes das questões econômicas.

Ele se formou em matemática, mas, diferenemente dos economistas mais doutrinários, encarava os mercados como fenômenos sociais. Keynes insistia que os estudiosos da economia deveriam ser curiosos e intelectualmente ágeis, dotados de interesse permanente pela psicologia humana e pelas questões éticas.

Keynes não tinha dificuldade em mudar de ideia e tendia a projetar essa flexibilidade intelectual nos outros, mesmo quando eles não o mereciam. Era uma qualidade que o tornava esperançoso, otimista e às vezes “perigosamente ingênuo”, escreve Carter.

No final da Primeira Guerra Mundial, como emissário do Tesouro britânico na Conferência de Paz de Paris, ele argumentou com veemência contra a proposta de tentar arrancar reparações pesadíssimas da Alemanha. Seu argumento foi tanto moral quanto pragmático. “Se queremos ordenhar a Alemanha, ela não pode ser arruinada primeiro”, ele explicou pacientemente a seus colegas.

No entanto, a Alemanha estava arruinada, e os temores de Keynes foram confirmados. A população alemã, humilhada, sofreu sob as condições de austeridade impostas por uma dívida esmagadora. Demagogos cresceram em meio ao clima de ressentimento supurante. “As Consequências Econômicas da Paz”, o compacto e devastador ataque de Keynes ao Tratado de Versalhes, foi publicado em 1919 e e se tornou rapidament best-seller internacional, se bem que a extensão de sua importância e presciência só seria revelada com o tempo.

Mais imediatas —e inegavelmente deliciosas— foram suas invectivas mordazes (mais uma influência do Grupo de Bloomsbury). Ele comparou o presidente Woodrow Wilon a um “Dom Quixote cego e surdo” e não foi muito mais gentil ao falar de seu próprio primeiro-ministro. David Lloyd George, escreveu Keynes (em um trecho que foi cortado de edições posteriores do livro), era um “vampiro” que estava “enraizado no nada”.

Keynes passaria a década seguinte curtindo sua vida, especulando com moedas estrangeiras, caçando raposas, promovendo jantares e conhecendo a bailarina russa que acabaria se tornando sua esposa. (Para alguns dos Bloomsberries, essa foi uma mudança inesperada; até então, escreve Carter, Keynes havia sido “entusiasticamente gay”.) Ele também começou a desenvolver suas ideias sobre o monetarismo, explicando como os governos podem cultivar o crescimento e a estabilidade econômica administrando a oferta monetária.

As explicações que Carter oferece sobre a teoria macroeconômica entremeiam sua narrativa de maneira tão natural que são quase imperceptíveis; você só percebe como são substantivas quando chega ao capítulo sobre o livro notoriamente denso publicado por Keynes em 1936, “Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda”, e percebe que está fascinado por um trecho sobre flutuações na preferência de liquidez, porque de alguma maneira você sabe que é exatamente diss

“Teoria Geral” à parte, o esboço da história de Keynes é que ninguém dotado de algum poder deu ouvidos às suas propostas visionárias antes da crise da Grande Depressão; depois disso, quase todos o ouviram.

As ideias de Keynes eram radicais, escreve Carter, mas ele era firmemente antirrevolucionário: tendo sido traumatizado pela Primeira Guerra Mundial, Keynes se esforçou para convencer alguns de seus estudantes marxistas em Cambridge que uma sociedade mais justa e equitativa não precisava nascer da ponta de uma arma. Um governo ativivsta e gastos públicos deficitários poderiam aliviar o sofrimento e incentivar o crescimento, ele argumentou, e o mundo acabou por seguir seu conselho.

Por mais que Franklin Roosevelt não quisesse criar déficit, seu New Deal trouxe uma versão de como o keynesianismo funcionava. A Segunda Guerra Mundial ofereceu outra.

O protagonista de Carter morre a mais ou menos dois terços do caminho de “The Price of Peace”, no domingo de Páscoa de 1946, mas a narrativa segue adiante. Nos anos do pós-guerra o keynesiasmo se consolidou como a nova ortodoxia econômica nos Estados Unidos. Carter acompanha a fragmentação do legado intelectual de Keynes e a reação neoliberal de Joseph Schumpeter e Friedrich Hayek.

Tanto keynesianos quanto neoliberais alegaram que suas teorias eram baluartes contra o autoritarismo, mas até meados da década de 1970 nenhum dos lados podia reivindicar o terreno moral mais elevado. Neoliberais como Milton Friedman estavam aconselhando a ditadura militar de Pinochet no Chile, enquanto sucessivas administrações americanas recorreram a manobras fiscais keynesianas para financiar o prolongado derramamento de sangue da Guerra do Vietnã.

Os republicanos gostam de falar de retidão fiscal, mas as administrações republicanas desde Ronald Reagan têm sido grandes gastadoras, inchando o déficit com gastos militares excessivos e guerras caras. Carter diz que foi uma administração democrata que se afastou do keynesianismo nos anos 1990, quando Bill Clinton tentou triangular um espaço fora da disputa partidária, reduzindo a regulação financeira e estabelecendo orçamentos equilibrados.

Porém, o keynesianismo nunca poderia ser suprimido por muito tempo. As ferramentas de Keynes se mostraram muito úteis, especialmente quando é preciso pagar por uma guerra interminável ou socorrer bancos.

Carter argumenta que o que tem faltado é um senso de propósito mais abrangente, uma visão da boa vida. Ele critica os presidentes Clinton e Obama, dizendo que, em um esforço inútil de acalmar a direita, eles desperdiçaram sua chance de definir o que isso poderia ser. Como mostra esse livro brilhante e incisivo, ser justo e sensato não significa necessariamente tentar reconciliar todos os lados.

The Price of Peace: Money, Democracy, and the Life of John Maynard Keynes

  • Preço R$ 286 (628 págs.)
  • Autoria Zachary D. Carter
  • Editora Random House

Jennifer Szalai é crítica de livros de não ficção do jornal The New York Times.

Tradução de Clara Allain.

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