Descrição de chapéu
Luísa Pécora

Brasileira conta como é viver sem medo da Covid-19 na Nova Zelândia

Em um país onde é seguro sair sem máscara e se aglomerar em lugares fechados, único temor é pela vida de parentes e amigos no Brasil, diz

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Luísa Pécora

Jornalista e criadora do site Mulher no Cinema

[resumo] País referência no controle da pandemia, a Nova Zelândia permitiu a seus cidadãos a retomada de hábitos normais até 2019, mas hoje impraticáveis no resto do mundo. Jornalista brasileira conta sua rotina de sair sem máscaras, se aglomerar nas ruas, cumprimentar amigos com abraços e ir regularmente a restaurantes e cinemas —tudo sem receio de se contaminar ou contaminar os outros.

Se fosse possível a um cidadão brasileiro entrar agora mesmo em um avião, cruzar o Oceano Pacífico e pousar na Nova Zelândia, a sensação seria a de desembarcar não em outro país, nem em outro planeta, mas em 2019.

Naquele tempo em que pessoas se cumprimentavam com abraços e sem medo. Em que um “parabéns pra você” ecoava em um bar, e as mãos de muitos amigos se dirigiam à mesma porção de batata frita. Em que multidões se aglomeravam nas ruas (sem máscara!) para um festival de jazz. Em que uma big band se apresentava em um teatro lotado. Em que idosos e jovens dançavam juntos em um salão fechado. Em que pessoas faziam fila em um bufê para se servir com a mesma colher.

Esta não é a descrição de um passado distante, mas de como passei o feriado da Páscoa. Morando na Nova Zelândia há mais de um ano, vivo na prática o tão comentado sucesso do país no controle do coronavírus. Do início da pandemia até 15 de abril, a Nova Zelândia registrou 2.235 casos e apenas 26 mortes causadas pela Covid-19.

Pessoas cantam e danças sem máscaras em festival nas  de Wellington, capital da Nova Zelândia, em 27 de março de 2021
Pessoas participam do festival de artes e música CubaDupa nas ruas de Wellington, capital da Nova Zelândia, em 27 de março de 2021 - Zhang Jianyong/Xinhua

Como consequência, há oito meses levo uma vida normal. Vou ao cinema regularmente. Empresto livros na biblioteca. Frequento restaurantes, shows e casas de amigos. Divido a piscina pública com estranhos. Fui a festas de Natal e Réveillon. Se gostasse de eventos esportivos, poderia vê-los na arquibancada cheia. Usei máscara apenas uma vez, no mês passado, e não me lembro de quando foi a última vez que senti medo de me contaminar ou de contaminar alguém.

A população vive com apenas duas restrições: uso obrigatório de máscaras em aviões e no transporte público e fechamento de fronteiras a estrangeiros. A entrada no país é permitida a cidadãos, residentes e cônjuges, que vão direto para a quarentena obrigatória em hotéis supervisionados pelo governo (uma exigência que em 19 de abril deixará de ser feita a quem vier da Austrália). Os profissionais que trabalham na fronteira, e não os da saúde, são os que estão mais em risco e encabeçam a vacinação.

Com o vírus sob controle, contudo, o país não é prioridade no recebimento das doses: até agora, apenas 0,6% da população foi completamente imunizada.

Em lockdown

Desembarquei na Nova Zelândia em 22 de março de 2020, três dias antes de o país entrar em lockdown e quando quem chegava ainda se isolava em casa. Eu e meu marido, que é neozelandês, estávamos no Havaí quando a pandemia se agravou e as fronteiras começaram a ser fechadas.

Em meio às incertezas, tivemos de decidir entre voltar a São Paulo, onde morávamos, ou trocar a passagem para a Nova Zelândia.

As vantagens da segunda opção eram óbvias. Sabíamos que era possível esperar bom senso e transparência da primeira-ministra Jacinda Ardern, e que o distanciamento social seria muito mais fácil em um país insular, rico e com 5 milhões de habitantes.

A cidade litorânea onde moro, Tauranga, tem apenas 140 mil moradores e já é a quinta mais populosa da Nova Zelândia. O número de arranha-céus é zero, casas com quintal são o padrão, parques e praias estão sempre por perto. Optar por Tauranga também significava ir ao outro lado do mundo por tempo indeterminado, sem me despedir de amigos e familiares e com nada além de uma mala.

Por incrível que pareça, o Brasil ficara à frente da Nova Zelândia no Índice Global de Segurança em Saúde (GHS, na sigla em inglês), divulgado em outubro de 2019 pela Iniciativa de Ameaças Nucleares e pelo Centro para Segurança de Saúde da Universidade Johns Hopkins. O estudou ranqueou 195 países quanto à capacidade de lidar com epidemias ou pandemias. O Brasil foi considerado o 22º país mais preparado; a Nova Zelândia, o 35º. Em primeiro, ficaram os Estados Unidos.

Pouco mais de um ano depois, em janeiro de 2021, um ranking do Lowy Institute elegeu a Nova Zelândia como o país que lidou melhor com a Covid-19, e o Brasil como o que lidou pior.

Há quem desconsidere a comparação com o argumento de que um país continental, maior, mais populoso e mais pobre nunca teria a capacidade da Nova Zelândia em conter o vírus. E, de fato, a estratégia de eliminação da doença adotada por Jacinda não é facilmente repetida mesmo em outros países ricos.

No entanto, o Brasil poderia ter evitado o desastre atual se tivesse seguido, dentro da sua capacidade, os princípios básicos que garantiram o sucesso neozelandês: testar a população, isolar contaminados e suspeitos de contaminação, e adotar medidas coordenadas de isolamento social.

O lockdown da Nova Zelândia foi nacional, decretado quando o país não tinha registrado sequer uma única morte. Durante cinco semanas, escolas e todos os demais estabelecimentos —salvo hospitais, supermercados, farmácias— fecharam as portas. Restaurantes não podiam funcionar nem como delivery; lojas online só vendiam itens essenciais, para reduzir tanto a circulação de consumidores quanto a de trabalhadores.

Eu não podia viajar a outra cidade, nem encontrar quem não morasse comigo. Exercícios ao ar livre eram permitidos desde que no próprio bairro: tudo bem caminhar no parque a dois quarteirões de casa, mas não na praia a 15 minutos de carro.

Pressões pela reabertura precoce vieram por parte da oposição e dos comerciantes, mas Jacinda resistiu, oferecendo auxílio financeiro a trabalhadores e empresas. Ao insistir que a melhor política econômica era sanar a crise sanitária, evitou o abre-fecha e permitiu que o país passasse gradualmente a níveis mais baixos de alerta.

Em 18 de maio, todos os 800 mil estudantes voltaram à escola. Em 8 de junho, já não havia mais nenhum caso de Covid e todas as restrições foram levantadas, salvo o fechamento da fronteira. De lá para cá, cada vez que um novo caso de transmissão comunitária apareceu, o governo agiu para contê-la, às vezes com lockdowns curtos e regionais.

O trabalho de contact tracing (rastreamento de contato) permite que as autoridades identifiquem rapidamente possíveis contaminados, que logo são isolados e testados. Com um aplicativo de celular, mais de 2,7 milhões de usuários mantêm um diário escaneando QR codes localizados na porta de restaurantes, cinemas, escolas e até banheiros públicos. Se eu for diagnosticada com Covid, todos que escanearam códigos nos mesmos lugares e horários que eu serão automaticamente avisados.

Fique em casa, salve vidas

Nada, porém, me impressionou mais do que o modo como o governo neozelandês se comunicou com a população. Como eu, milhares de pessoas ligavam a televisão ou acessavam a internet todos os dias às 13h para assistir aos pronunciamentos de Jacinda e do diretor-geral da Saúde, Ashley Bloomfield.

Primeiro, eles informavam a população sobre número de casos, mortes e testes, e sobre novas medidas que estavam sendo tomadas. Depois, concediam uma entrevista coletiva, também transmitida ao vivo, na qual respondiam à imprensa com clareza e respeito.

Tão importante quanto o que respondiam era o que não respondiam. Como em qualquer lugar do mundo, na Nova Zelândia há os negacionistas, os teóricos da conspiração, os anti-vacina e os anti-lockdown.

Por diversas vezes vi um pequeno grupo de manifestantes na principal avenida de Tauranga chamando Jacinda de “comunista”. Caminhando no parque, me deparei com um cartaz eleitoral da premiê vandalizado por uma pichação que dizia: “control freak”.

Até por isso, Jacinda era cuidadosa quanto aos assuntos aos quais dava plataforma. Quando um jornalista citou as teorias que relacionavam 5G e coronavírus, ela foi breve: “A única coisa que vou dizer sobre isso é que não é verdade”. A quem falava que a Covid apenas matava idosos já prestes a morrer, ela mandou um recado: “Diga isso a quem perdeu alguém que amava”.

Jacinda foi firme, mas sensível e conciliadora. Para reforçar o caráter coletivo do combate à pandemia, ela se referia aos neozelandeses como “um time de 5 milhões”, assim como a campanha de mídia sobre o vírus foi intitulada “Unidos contra a Covid-19”. O slogan da campanha contra a propagação do vírus era ainda melhor, capaz de definir em poucas palavras o que era preciso fazer e o que estava em jogo: “Fique em casa, salve vidas”.

O excepcional trabalho de Jacinda lhe rendeu reeleição com votação histórica, admiração internacional e muita popularidade, a ponto de atingir até o mais surpreendente dos redutos: o bolsonarismo. Recebo mensagens e vejo posts elogiosos à premiê neozelandesa por parte de eleitores que ainda apoiam o presidente brasileiro, um paradoxo inexplicável em se tratando de opostos radicais.

Em que pesem as diferenças sociais, econômicas e geográficas de Brasil e Nova Zelândia, a real razão do abismo que separa os dois países neste momento é o fato de Bolsonaro ter feito o contrário do que Jacinda fez.

Ele minimizou o coronavírus; ela levou a sério. Ele fez campanha contra o lockdown; ela implementou-o rapidamente. Ele defendeu tratamentos sem comprovação científica; ela tomou decisões baseadas em ciência. Ele se recusou a negociar vacinas; ela comprou doses suficientes para toda a população neozelandesa e para ajudar ilhas vizinhas mais pobres.

Ele promoveu repetidas aglomerações; ela rebaixou o ministro da Saúde que burlou as regras do isolamento ao dirigir até a praia (mas só o demitiu depois de a pandemia estar controlada, para não promover troca de ministros em hora crítica). Ele escondeu dados da imprensa; ela foi transparente. Ele espalhou desinformação; ela a combateu. Ele dividiu a população; ela uniu. Ele falou com desprezo sobre milhares de vidas; ela lamentou cada uma das 26 mortes.

Bolsonaro não tinha os recursos de Jacinda, mas boa liderança e empatia não custam um centavo. Se agiu de forma tão diferente da premiê neozelandesa, foi porque quis —e o mundo inteiro sabe disso.

Minha sensação é a de que a imagem internacional do Brasil foi arrasada. Quando morei aqui anteriormente, em 2016, os neozelandeses me perguntavam sobre a cultura, as pessoas, o clima, a natureza do Brasil; agora, querem saber se minha família está em segurança e entender como Bolsonaro conseguiu se eleger.

O tom de simpatia e curiosidade passou a ser de pena e incredulidade. Os amigos que planejavam nos visitar se mostram surpresos com meus planos de um dia voltar para casa. De pessoas próximas ou estranhas, ouço sempre a mesma frase: “Você deve estar muito feliz de estar aqui”.

Não há, porém, como ser brasileiro e estar feliz. Na inusitada situação em que me encontro (o corpo no país que melhor lidou com a pandemia, os laços afetivos no que pior lidou), o prazer de ter liberdade e a tranquilidade de estar em segurança convivem com o temor pela vida das pessoas queridas e pelos duradouros efeitos dessa tragédia sanitária e política.

“Culpa de sobrevivente” talvez defina a sensação de viver a era Covid na Nova Zelândia. Foi o que pensei quando uma amiga que acabara de perder o sogro me pediu para contar sobre minha vida, e recomendou que não tivesse vergonha de dizer que estava bem. “Quero ver a notícia boa”, ela escreveu. “Quero ver a luz no fim do túnel”.

Luz no fim do túnel, para mim, é vacinação em massa e impeachment. Mas repasso um conselho de Jacinda Ardern: sejam fortes e sejam generosos.​

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