Em canção de Bob Dylan, só chapéu e sapatos resistem a terremoto; leia tradução inédita

Vencedor do Nobel de Literatura, que completa 80 anos, compôs 'Black Diamond Bay' com dramaturgo Jacques Levy

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Bob Dylan

Cantor, compositor, escritor e vencedor do Prêmio Nobel de Literatura

Jacques Levy

Compositor e dramaturgo

[SOBRE O TEXTO] "Desire", de 1976, é um raro disco em que Dylan (que completa 80 anos nesta segunda, 24) dividiu a autoria de suas letras, no caso, com o dramaturgo Jacques Levy. "Black Diamond Bay", traduzida aqui, é a penúltima canção do álbum e conta uma história inspirada em uma notícia que Dylan viu no programa de TV jornalístico do âncora Walter Cronkite (citado na última estrofe) e no livro "Victory", de Joseph Conrad (não citado). A tradução vai integrar um livro com letras de Dylan, a ser lançado pela Companhia das Letras.

Baía do Diamante Negro

Lá na varanda branca
Ela usa uma gravata e um panamá
Seu passaporte mostra um rosto
De outro tempo, outro lugar
Não se parece nada com aquilo
E todos os vestígios de seu passado recente
Espalham-se no vento indomado
Ela caminha pelo piso de mármore
Onde uma voz da sala de jogos pede que entre de uma vez
Ela sorri, vai pro outro lado
Enquanto veleja a última nau e a luz some aos poucos
Da Baía do Diamante Negro

Quando a luz da manhã irrompe, o grego chega
E pede uma corda e uma caneta que escreva
“Pardon, monsieur”, diz o sujeito do balcão
Cuidadosamente retira o barrete
“Estou ouvindo bem?”
E enquanto a neblina amarela dissipa
O grego velozmente segue rumo ao segundo andar
Passa por ele na escada espiral
Pensando que é o embaixador soviético
Ela começa a falar, mas ele se afasta
Enquanto as nuvens de tempestade se acumulam e as frondes de palmeira oscilam
Na Baía do Diamante Negro

Mulher de costas com chapéu e vulcão ao fundo
Ilustração - Adams Carvalho

Um soldado sentado sob o ventilador
Negociando com um sujeito minúsculo que lhe vende um anel
Cai um relâmpago, as luzes apagam
O sujeito do balcão desperta e se põe a gritar
“Vocês estão conseguindo enxergar alguma coisa?”
Aí o grego aparece no segundo andar
Descalço e com uma corda no pescoço
Enquanto um perdedor na sala de jogos acende uma vela
Fala, “Abram outro baralho”
Mas o crupiê diz, “Attendez vous, s’il vous plaît”
Enquanto a chuva bate forte e as cegonhas saem voando
Da Baía do Diamante Negro

O sujeito do balcão ouviu a mulher rir
Enquanto ele olhava os resultados e o soldado ficava mais sério
Tentou agarrar a mão da mulher
Disse, “Pega este anel, custou um milhão”
Ela disse, “Não chega”
Então ela correu escada acima pra fazer as malas
Enquanto um táxi a cavalo esperava na rua
Ela passou pela porta que o grego tinha trancado
Onde uma placa escrita à mão dizia, “Não perturbe”
Bateu mesmo assim
Enquanto o sol descia e a música ia tocando
Na Baía do Diamante Negro

“Tenho que falar rápido com alguém!”
Mas o grego disse, “Vá embora”, e derrubou a cadeira com um chute
Ficou ali pendurado no candelabro
Ela gritou, “Socorro, o perigo está perto
Por favor abra a porta!”
Aí o vulcão entrou em erupção
E a lava escorreu da montanha lá no alto
O soldado e o sujeito minúsculo estavam agachados no canto
Pensando no amor proibido
Mas o sujeito do balcão disse, “Acontece todo dia”
Enquanto as estrelas caíam e os campos ardiam em chamas
Na Baía do Diamante Negro

Enquanto a ilha afundava lenta
O perdedor finalmente quebrou a banca na sala de jogos
O crupiê disse, “Agora é tarde demais
Pode levar seu dinheiro, mas não sei como
Você vai gastar na sepultura”
O nanico mordeu a orelha do soldado
Enquanto o chão despencava e a caldeira no porão explodia
Enquanto ela está na sacada, onde um desconhecido lhe diz
“My darling, je vous aime beaucoup”
Ela solta uma lágrima e aí começa a rezar
Enquanto o fogo vai ardendo e a fumaça se afasta
Da Baía do Diamante Negro

Estava sentado sozinho em casa uma noite em LA
Vendo o velho Cronkite no jornal das sete
Parece que teve um terremoto que
Deixou somente um chapéu panamá
E um par de velhos sapatos gregos
Não parecia que estava acontecendo muita coisa
Então desliguei e fui pegar outra cerveja
Parece que toda vez que você se vira
Tem outra história de desgraça pra ouvir
E no fundo não há o que se possa dizer
E eu nunca quis mesmo ir
À Baía do Diamante Negro


Tradução de Caetano Galindo, professor de linguística na UFPR (Universidade Federal do Paraná) e tradutor de livros como "Ulysses", de James Joyce (Companhia das Letras).

Ilustração de Adams Carvalho, artista plástico.

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