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Idealizador do modelo Curitiba, Jaime Lerner não escapou de críticas de urbanistas

Morto nesta quinta, ex-governador teve reconhecimento internacional e deixou projetos nunca realizados em São Paulo

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Eduardo Sombini
Eduardo Sombini

Doutor em geografia pela Unicamp, é repórter da Ilustríssima

[RESUMO] Projetos ambiciosos de Jaime Lerner nos anos 1970, em contraste com a política urbana da ditadura militar, tranformaram Curitiba em modelo internacional de urbanismo. A ideia de acupuntura urbana e a aposta em edifícios icônicos para revalorizar áreas da cidade, por sua vez, receberam críticas por excessos e riscos de gentrificação.

Não é exagero afirmar que Jaime Lerner, morto nesta quinta-feira (27) aos 83 anos, mudou os rumos do planejamento urbano brasileiro com os projetos ambiciosos que implementou em Curitiba a partir dos anos 1970.

Prefeito da capital paranaense pela primeira vez no início dessa década, o urbanista deu forma a eixos de transporte público ligando a área central da cidade aos seus diversos quadrantes.

Simbolizados pelas estações-tubo, implantadas posteriormente, os corredores de ônibus foram acompanhados pela verticalização das quadras do entorno, o que permitiu o adensamento das áreas de maior oferta de transporte coletivo —aplacando, dessa forma, a obsessão com os carros na produção do espaço das cidades brasileiras.

Enquanto a política urbana desenhada pela ditadura militar instaurava regiões metropolitanas sem instrumentos e sem a própria intenção de frear a expansão horizontal das grandes cidades, a Curitiba imaginada por Jaime Lerner buscava, ao menos, impor um mínimo de racionalidade à atuação do mercado imobiliário.

Ainda que o projeto inovador de Lerner em Curitiba não fosse propriamente inédito —adensar áreas bem-servidas de infraestrutura e transporte coletivo é uma ideia antiga no pensamento urbanístico—, o então prefeito teve o mérito de conceber um programa que contrastava com o rodoviarismo e a produção infindável de periferias precárias.

Os corredores de ônibus de Curitiba ganharam projeção internacional e passaram a ser difundidos como uma solução de mobilidade urbana de baixo custo, alta efetividade e rápida implementação, adequada à realidade das cidades latino-americanas. O sistema se tornou o pilar do chamado modelo Curitiba, que também abarcava iniciativas como a criação de calçadões em ruas comerciais, a verticalização planejada das áreas centrais, a construção de equipamentos públicos nas periferias e a implementação de parques de grande porte em espaços não aproveitados.

Com grandes investimentos em marketing, como apontam as pesquisas de Fernanda Sánchez, professora da UFF (Universidade Federal Fluminense), Curitiba forjou uma imagem de cidade do futuro, uma espécie de símbolo dos atributos que toda metrópole deveria ter na virada do milênio: competitividade, eficiência, sustentabilidade.

Lerner, idealizador do modelo, recebeu prêmios importantes e angariou reconhecimento internacional, e o BRT de Curitiba, o sistema de transporte sobre pneus, foi exportado para dezenas de cidades ao redor do mundo —Bogotá se inspirou na experiência curitibana para implantar seu também celebrado TransMilenio, que projetou Enrique Peñalosa.

O urbanista conseguiu colocar de pé uma versão latino-americana do modelo Barcelona, síntese construída a partir das transformações simbólicas e urbanísticas da capital catalã antes dos Jogos Olímpicos de 1992. Explorando a imagem de metrópole verde, Lerner alcançou um terceiro mandato, entre 1990 e 1993, que teve como principal slogan Curitiba capital ecológica, e deixou o cargo com mais de 90% de popularidade, de acordo com Fernanda Sánchez.

Governador do Paraná entre 1995 e 2003, Lerner também investiu em seu escritório de arquitetura e na carreira de consultor de projetos urbanos. A ideia de acupuntura urbana —sua proposta mais conhecida, título de um livro publicado em 2003— teve ressonância internacional, sobretudo nos círculos preocupados com a diversidade social e cultural das cidades.

O urbanista advogava que intervenções pontuais, mas estratégicas —como uma agulha de acupuntura—, poderiam ter efeitos sistêmicos sobre a cidade, em contraposição à antiga prática de intervir na cidade destruindo o tecido urbano existente. Suas críticas constantes ao papel dos automóveis nas cidades, que comparava ao cigarro, também provocavam simpatia.

A imagem de Lerner, no entanto, foi cada vez mais associada ao mainstream do urbanismo nos tempos de desvario estético e financeiro pré-crise de 2008. Sua acupuntura urbana foi objeto de críticas por setores mais progressistas, que a denunciavam como uma justificativa para a lógica de construir âncoras, como grandes equipamentos culturais, para revalorizar trechos da cidade, com o risco de desencadear a gentrificação dessas áreas. A Sala São Paulo —espaço de concertos implantado no meio da cracolândia, na capital paulista, no fim dos anos 1990— dialogava com essa ideia.

Em 2005, Lerner foi contratado por um dos grupos interessados em implementar uma primeira versão do Nova Luz, amplo projeto de renovação urbana dos bairros da Luz e da Santa Ifigênia, no centro de São Paulo, fortemente denunciado por movimentos sociais. Sua proposta multimilionária previa a criação de bulevares com atmosfera europeia e de um marco para a intervenção —uma torre de 80 andares e 200 metros ao lado da Estação da Luz.

Alguns anos mais tarde, o prefeito Gilberto Kassab tentou emplacar o Nova Luz por meio de um novo instrumento para conceder cerca de 40 quadras a um consórcio privado, mas com gabaritos mais modestos.

Lerner apresentou em 2017 mais um projeto que parecia fora do lugar, chamado Centro Novo. Contratada pelo Secovi, o sindicato do mercado imobiliário de São Paulo, e doada à prefeitura, a nova proposta insistia nos bulevares e imaginava um ônibus elétrico moderno conectando as principais “âncoras” da área central e percorrendo as ruas que hoje abrigam ocupações de famílias sem-teto e usuários de crack.

O então prefeito João Doria disse que a orientação era “vipt-vapt” para implementá-lo, mas, até hoje, as imagens renderizadas permanecem no enorme arquivo de projetos mais ou menos irreais para o centro de São Paulo e nunca implementados.

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