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Ana Maria Bahiana

50 anos e uma falsa morte depois, minha aventura com Zé Mauro finalmente faz sentido

Jornalista conta sua parceria com o músico, tido como morto por muitos anos; álbuns foram relançados

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Ana Maria Bahiana

Jornalista da área cultural e editora-adjunta do site goldenglobes.com, é autora, entre outros livros, de "Nada Será Como Antes - MPB nos Anos 70" (Civilização Brasileira, 1980)

[RESUMO] Autora, letrista de canções de José Mauro, rememora a experiência compartilhada com o cantor no início dos anos 1970. "Obnoxious", álbum de estreia do músico, foi relançado em 2016 no Reino Unido com a informação de que ele havia morrido décadas antes, ecoando rumores de que tinha sofrido um acidente de moto ou sido assassinado pela ditadura. Com a confusão desfeita —José Mauro está vivo e tem 72 anos— , o selo Far Out lançou em maio "A Viagem das Horas", que reúne canções gravadas junto ao primeiro LP que estavam fora de circulação.

É difícil lembrar exatamente como tudo começou. Mais fácil recordar como acabou: com um beijo em um Galaxy dourado em frente à casa onde eu morava, na Lagoa, quando o sol ia aparecendo, sem muita pressa, sobre Ipanema.

Não tinha dado certo, eu pensei e ele pensou —o trabalho tinha sido lindo, era lindo, seria lindo sempre, tinha bons ossos, tinha um grande coração, mas alguma coisa estava fora de ordem.

Eu não disse e ele não disse, mas a estrada bifurcava ali. Eu ia retomar a faculdade, porque mesmo com as “visitas” da PM e o “sumiço” de professores eu tinha que fazer minha vida com a minha paixão, o que eu sabia fazer —escrever. Ele ia batalhar mais um pouco, quem sabe o segundo disco fosse emplacar, quem sabe o primeiro fosse ser descoberto. Antes tarde do que nunca.

Roberto Quartin (esq.), Ana Maria Bahiana e José Mauro - Reprodução

O ano era 1971. Menos de um ano depois, eu estaria trabalhando no meu primeiro emprego como jornalista, na Rolling Stone brasileira. Nos vimos algumas vezes, cada vez mais raras. Nossas obras desapareceram. Era como se nada tivesse acontecido.

Eu pensei, acho que ele pensou também, que talvez só nós dois saberíamos que todas aquelas canções existiam. Uma coisa rara, secreta.

Cada um de nós tinha uma narrativa de como nos tornamos amigos, parceiros, cúmplices. Na minha versão da história, uma colega de colégio, amiga de muita gente na cena musical udigrúdi (porque na superfície vivia a ditadura e sua filha, a censura), me apresentou ao José Mauro.

Ele veio me visitar quando eu estava me recuperando da primeira de muitas cirurgias no meu joelho esquerdo. Felizmente, ele trouxe o violão. Ele era fã de Edu Lobo, Tom Jobim. Eu só ouvia Jimi Hendrix, Beatles, Rolling Stones, Bob Dylan. Em que idioma conseguiríamos conversar, musicalmente?

Na verdade, era fácil —não era uma questão de gosto, era a comunhão, ouso dizer, espiritual de duas pessoas muito jovens, muito sensíveis, cada um com um oceano particular de sonhos, perdas, dores, dúvidas, duas pessoas ainda se descobrindo, se inventando. Ainda não éramos quem queríamos ser.

Ele achava os acordes, quase sempre menores, coisa que me falava ao coração, e cada acorde vibrava palavras na minha cabeça. Eu propunha palavras, e elas rapidamente se vestiam de música. Podia ser na minha casa, de frente para a lagoa Rodrigo de Freitas, ou no apartamento dele, olhando a bicharada do parque Lage. Ou pelo telefone. Ou em um canto da famosa casa da rua Jaceguai, na Tijuca, ponto de encontro de toda uma geração de aspirantes a artistas (e muitos foram: Gonzaguinha, Aldir Blanc, Cesar Costa Filho, Rolando, João Bosco).

Para mim, era uma experiência inteiramente nova, uma possibilidade até então impensada para esse meu bizarro dom com as palavras, brotado não sei nem como, em uma família de médicos, engenheiros e arquitetos.

Musicalmente, era uma descoberta para mim. Não exatamente bossa nova, a música que Zé Mauro conjurava soava próximo de folk, para mim, passando por camadas de samba, baião, ritmos afro, mas não exatamente isso —algo mais, algo além, algo misturado e apurado em uma alquimia que eu ainda não conhecia.

Hoje, com a distância do tempo, é possível ver como a originalidade e a profundidade dessas obras eram seu grande problema. Não se pareciam com coisa alguma. Não seguiam tendências em voga. Não pertenciam a grupo algum, linha alguma.

Hoje eu ouço e me pergunto: o que eram essas canções, o que era essa música? Os registros de duas pessoas mal saídas da adolescência, num país coberto de trevas, dizendo ao mundo que havia algo mais a ser dito, cantado, ouvido.

Seria ousadia? Não pensávamos nisso. Foram precisos 50 anos para que aquela aventura —tão pessoal, tão cheia de carinho e ideias— finalmente fizesse sentido.

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