Há 50 anos, mítico show 'Fa-Tal' fez de Gal a musa do desbunde

Cantora e demais artistas relembram o espetáculo que simbolizou as conquistas da contracultura em meio a repressão militar

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Claudio Leal

Jornalista e mestre em teoria e história do cinema pela USP

[RESUMO] Em 1971, estreava o show que fez de Gal Costa, em meio ao terror da repressão militar, a maior expressão vocal do desbunde. A cantora, os companheiros de geração e os demais artistas envolvidos no espetáculo comentam como ele se tornou um mito na cultura brasileira.

Como nasce um mito? Gal Costa sorri e diz que não sabe. No show “Fa-Tal”, em 1971, a cantora continuou a esculpir sua personalidade artística.

De colete curto, exibindo o bronze de Ipanema, a musa radical se despiu mais e desceu o saião preto ao umbigo e à costela. Sua maquiagem na testa, seus brilhos dourados e prateados, seus lábios vermelhos e sua doce agressividade compunham o estilo de uma mulher fa-tal, merecedora deste hífen.

O show “Gal a Todo Vapor”, no imaginário “Gal Fa-Tal”, completa 50 anos com sua mística ampliada a novas gerações pelo disco gravado ao vivo. Em 12 de outubro de 1971, no Teatro Tereza Rachel, em Copacabana, a cantora de 26 anos parecia inaugurar uma utopia cercada de ditadura por todos os lados: “Eu sou uma fruta gogóia/ Eu sou uma moça/ Eu sou calunga de louça/ Eu sou uma jóia”.

Sua banda era formada por Lanny Gordin, guitarrista e responsável pelos arranjos, Novelli no baixo, Jorginho Gomes na bateria e Baixinho na tumbadora. No meio da primeira temporada —a segunda entrou pelo verão de 1972—, indicado por Gilberto Gil, Pepeu Gomes substituiu Lanny, que precisou fazer uma turnê com Jair Rodrigues.

Com produção de Paulinho Lima e direção artística de Waly Salomão, o “Fa-Tal” seduziu os desgarrados da esquerda e os nauseados com o poder militar. Depois do terror do AI-5, Gal se tornou a maior expressão vocal do desbunde, a vertente solar da contracultura brasileira.

O porquê do mito tem muitas voltas. “Não sei responder, não. Ele se tornou mítico. Até hoje as pessoas gostam e curtem, principalmente a galera mais nova. Cultuam esse disco”, diz Gal Costa, que fará uma live no dia 28 de maio, às 20h, no Teatro Bradesco, com transmissão no YouTube.

“É um show que tem muita ligação com o momento que a gente vivia, com a partida dos tropicalistas, de Caetano e Gil. Tem muita referência a eles. E eu estava vivendo uma carreira que a censura não me censurou. Quer dizer, consegui fazer um trabalho onde absorvi muito da cultura tropicalista daquele momento.”

O poeta baiano Waly Salomão, diretor do show, voltava a circular no Rio depois de ser preso por porte de maconha. O primeiro capítulo de seu livro “Me Segura qu’Eu Vou Dar um Troço”, de onde veio a palavra-destaque “Fa-Tal”, até nascera no Carandiru.

Sua força criadora se alimentava não apenas de leituras intensas, mas das vivências na marginália carioca, sendo guiado nas quebradas pelo artista plástico Hélio Oiticica. “Waly era um diretor que massageava muito meu ego, passava muita energia. Era um diretor que me incentivava”, lembra Gal.
Na arquitetura musical, havia um gênio da guitarra. “A Gal, por intermédio do empresário dela, o Paulo Lima, me convidou para participar. Aí fiz todos os arranjos”, conta o guitarrista Lanny Gordin.

“Quando eu vi Jimi Hendrix pela primeira vez, me encantei pelo som que tirou da guitarra dele. E pelo estilo dele, que é muito original. Criei uma nova onda musical para mim.” Lanny se considera “mais músico do que tropicalista” e guarda um fragmento de sua performance: “Toquei ‘Pérola Negra’ de uma maneira que eu mesmo fiquei impressionado”.

A virada do estilo interpretativo de Gal acontecera ainda no movimento tropicalista, na apresentação de “Divino Maravilhoso”, no quarto festival da Record, em 1968. Ela tinha um cabelo black power, um vestido de cetim vermelho desenhado por Regina Boni e um colar de espelhos de Edinízio Ribeiro.
Saíam pelos poros as influências de Jimi Hendrix, Janis Joplin e James Brown. De passagem pelo Rio, no verão de 1970, Joplin soube de tais afinidades e comentou em uma coletiva no Copacabana Palace: “Todo o mundo me fala dessa Girl… Girl Costa”.

No “Fa-Tal”, a girl assumiu as luvas dos tropicalistas exilados em Londres e incorporou a mensagem melancólica de Caetano ao Brasil: “Maria Bethânia, please send me a letter”. Metade com Gal tocando violão, metade eletrificado, o espetáculo relia a tradição com o corpo inteiro na modernidade.

“Fruta Gogóia”, de domínio público, fazia a transição entre os dois climas. No repertório, estavam “Assum Preto”, de Luiz Gonzaga, “Falsa Baiana”, de Geraldo Pereira —presente em seu álbum anterior, “Legal”—, e “Antonico”, samba popularizado na voz da baiana. “Eu conheci Ismael Silva naquela época. Ele foi à minha casa. Não aprendi ‘Antonico’ com João Gilberto, não. Aprendi com Ismael.”

Ela assimilou músicos badalados pelos tropicalistas, como Jorge Ben (“Charles Anjo 45”) e Roberto e Erasmo Carlos (“Sua Estupidez”), apresentou a “Pérola Negra” de Luiz Melodia e lançou “Vapor Barato”, fruto da parceria recém-nascida de Waly e Macalé.

“Hotel das Estrelas”, de Duda Machado e Macalé, era outro diamante vindo de “Legal”, no belo arranjo de Lanny. E, claro, ela continuou a ser a voz-irmã de Caetano: “Coração Vagabundo”, “Como 2 e 2” e “Chuva, Suor e Cerveja”. A cantora oscilava da temperatura suave de “Antonico” para o pelando de quente de “Dê um Rolé”, de Luiz Galvão e Moraes Moreira —em algumas noites, os Novos Baianos a sucediam no teatro.

Sim, o show reafirmava as conquistas tropicalistas e acenava para Gil e Caetano no exílio —mas, não, aquilo era outro papo, uma nova experiência cultural pós-AI-5, em uma articulação de poesia, Rio, Bahia, feminilidade, artes visuais e potência sexual, sob a batuta de Waly Salomão. Era como se Gal encontrasse, enfim, a sua plateia ou a plateia encontrasse a sua voz. Ou, ainda, uma simbiose entre a arte e a vida, a praia e o palco.

Transgressores à margem da esquerda, hippies e artistas da contracultura formavam um círculo em que se ia para a cama sem cometer a grosseria de perguntar quem era hétero, homo, bissexual ou etc.

Há o mito “Fa-Tal” e suas consequências, mas Gal identifica suas principais rupturas no tropicalismo e em discos posteriores. “Caetano fez comigo trabalhos bastante radicais. Na época, ele fez o ‘Cantar’ [1974], que foi muito mal falado pela crítica da época. Era uma ruptura radical. Eu vinha de uma linguagem tropicalista de ‘Fa-Tal’, teve uma transição por ‘Índia’ [1973] e veio ‘Cantar’. ‘Recanto’ [2011] foi uma radicalização sonora grande”, avalia Gal.

“Waly foi um diretor que, em alguns momentos… Não teve grandes mudanças. Ele chamou o Olodum para tocar comigo, foi maravilhoso, mas Caetano fez coisas mais radicais. Waly também foi um grande diretor, contribuiu muito para a minha trajetória.”

De volta ao Rio, Caetano Veloso assistiu ao “Fa-Tal” e percebeu a consolidação de conquistas da contracultura. “Vi Gal dominando uma nova cena brasileira, já de novo centrada no Rio, com uma plateia que indicava a irreversibilidade das mudanças nascidas nos anos 1960. ‘Gal Fa-Tal A Todo Vapor’ era um evento tropicalista realizado, completo. Waly Salomão tinha encontrado em Gal a expressão mais acabada do espírito da época. E Gal brilhava como imagem do presente, do futuro, do para sempre. A voz, a figura, as pernas abertas, o violão”, conta Caetano.

O compositor Jards Macalé reconhece dois momentos de transformação. “Ela começou a mudar radicalmente com ‘Divino Maravilhoso’, no festival. Ali, ela deu uma virada pessoal. Agora, a virada geral, estética, de pensamento e posição política mais acentuada foi através do Waly. Foi ele quem transformou Gal na bandeira de um movimento. Já não era tropicalismo, não era nada. Era o pós-tudo. Waly transformou a Gal em uma intérprete daquele momento.”

Nos anos 1960, a tropicalista atraía hostilidades nas ruas do Rio e de São Paulo. O cabelão revolto, as roupas inusitadas e suas boas e más companhias enervavam os conservadores. A cantora não se esquece dos insultos. “Era muito difícil andar com aquele cabelo, aquelas roupas que eu usava. Algumas pessoas chegaram a me agredir. Era muito difícil, uma energia muito ruim, exceto nas dunas da Gal, onde a gente ficava ali meio protegida por uma aura misteriosa, energética.”

O país não custaria a ouvi-la em silêncio. Antes disso, houve o barulho de retroescavadeiras. No verão de 1971/1972, a construção de um píer, como parte do projeto de um emissário submarino, despejou toneladas de areia na praia do Posto 9, em Ipanema, pertinho da casa de Gal, que residia na rua Farme de Amoedo. Assim, e não por obra dos ventos, surgiram as “dunas do barato”, rebatizadas de “dunas da Gal” por Waly.

A cantora chegava pela manhã e partia ao entardecer com a alça de sua cesta indígena equilibrada na testa. Torquato Neto, Jorge Salomão, Paulinho Lima, José Simão, Wilma Dias e Ivan Cardoso eram outros plantonistas do pôr do sol. A cada mergulho, Gal atraía olhares tarados de homens e mulheres. Em cartaz no Teatro da Praia, o show “Rosa dos Ventos”, de Maria Bethânia, era visto com frequência por Gal.

“Era uma espécie de underground: todo o mundo fazendo topless, fumando maconha, tomando remédios loucos, cheirando cocaína, tomando sorvete, conversando, brincando”, descreve Macalé. “Aquele espaço era livre entre aspas, porque a repressão sempre ficou no entorno. Se você saía da praia e botava o pé no asfalto, não tinha colher de chá”, ele admite.

“Das Dunas da Gal direto para ‘Fa-Tal’!”. Este era o itinerário do escritor e depois colunista de humor José Simão e sua trupe. “Toda noite a gente ia para o show. Não é que a gente ia ao show. Era uma peregrinação, uma romaria. ‘Gal Fa-Tal’ inaugurou uma época. Foi um dos shows mais lindos que eu vi.”
Dona do teatro, a atriz Tereza Rachel arfava e dizia “eu não sou Jesus Cristo!” cada vez que Simão e Jorge Salomão empurravam convidados sem bilhetes para dentro.

“O teatro tinha um calor infernal e era mal equipado. Tereza Rachel era insuportável para se lidar no dia a dia. E metade não pagava o ingresso. Eram os amigos de Hélio Oiticica, Luiz Melodia, Zé Simão, Torquato Neto, Jorge Salomão, Waly, meus amigos e os da Gal. Essas pessoas iam todo dia”, conta o produtor Paulinho Lima. Recluso, mas nem tanto, João Gilberto compareceu mais de uma vez, sentando-se no fundo do palco.

Se no Brasil até os pássaros desafinavam, segundo a ironia de João, ali estava Gal, sua discípula, ensinando afinação aos rouxinóis, na abertura com violão. “Eu perguntei para ele qual a parte que mais gostava. Ele falou: ‘Da parte roqueira’. É porque eu toco violão muito mal. Vai ver que era por isso”, ela brinca.

Lá fora, a barra de viver rondava o desbunde. A repressão militar asfixiava pouco a pouco a confiança dos jovens na luta armada. “Oh, sim, eu estou tão cansado.” A essas palavras de “Vapor Barato”, a canção-símbolo do show, muitos se viam dentro de uma saída existencial, e sob o sol, para a resistência à ditadura: “Com minhas calças vermelhas/ Meu casaco de general/ Cheio de anéis”.

Gal acredita que, desde a tropicália, seus discos e shows tinham um impacto político. “Nunca fui muito ligada em política militante. Mas todo o trabalho tropicalista e meu trabalho naquela época eram políticos no sentido de irreverência, de derrubar barreiras”, ela pondera. “Eu nunca me envolvi muito com política, mas há momentos em que você tem que se posicionar. Agora mesmo. É um governo péssimo que está aí, uma coisa horrorosa. A gente tem que dizer: Fora Bolsonaro.”

A bandeira da liberdade sexual se associou à atmosfera das dunas e dos modos de vida ensaiados no início dos anos 1970, e a esse legado ela deseja se manter fiel: “Qualquer tipo de diversidade, eu sou defensora. As pessoas têm que respeitar as diferenças. O outro não tem que ser igual a você. Tem que ter liberdade de ser, de existir, seja você como for. Isso está implícito em mim, no meu jeito de ser”.

A cenografia acompanhou a proposição poética de Waly-Gal. No espetáculo anterior, “Deixa Sangrar”, dirigido por Duda Machado no Teatro Opinião, Hélio Oiticica criou o conceito de “ambientação”, mas, ao ganhar uma bolsa da Guggenheim, em Nova York, indicou o designer gráfico e pintor Luciano Figueiredo para executar sua maquete.

Adiante, reconvidado por Waly para o “A Todo Vapor”, Figueiredo seria o responsável por vincular as palavras “Fa-Tal” e “Violeto” ao novo show no Teatro Tereza Rachel, extraindo-as dos originais de “Me Segura”.

“A criação da ambientação e visualidade veio diretamente de minha relação com Waly, com quem já havia feito um trabalho com a palavra -FA-TAL-, que era uma faixa preta com essa palavra escrita em letras amarelas e purpurina”, lembra Figueiredo. “A palavra agigantada foi conceituada por Waly como palavra-destaque e logo, sob entusiasmo, planejamos levar aquela ideia para outros contextos.”

Pouco antes de outubro de 1971, Figueiredo e Óscar Ramos se conheceram e passaram a viver e trabalhar como dupla. “Criamos com Waly uma proposta de duas grandes faixas em tecido e cores diferentes para as palavras-destaque -FA-TAL- e VIOLETO, ambas de sua autoria. Era uma proposta bastante nova ter palavras suspensas de um ponto ao outro do palco, criando uma fusão com a cena musical. Pintamos também todo o chão do palco com as mesmas palavras e usamos as cores violeta e branco”, diz Figueiredo.

O lançamento do LP ao vivo, em dezembro de 1971, abafou o nome oficial do show, dali em diante chamado de “Gal Fa-Tal” por influência da palavra-destaque, no memorável projeto gráfico de Ramos e Figueiredo. A qualidade da gravação não era boa, apenas ok, mas a expressividade de Gal estava acima disso. Pepeu gravou a maioria das faixas aguitarradas.

As imagens em movimento do show ainda esperam vir à luz. Autor da fotografia dos lábios de Gal na capa do LP, o cineasta Ivan Cardoso encontrou em seu apartamento um curta inédito em super-8 sobre a apresentação. “No show ‘Gal Fa-Tal’, você encontrava as melhores gatinhas, as melhores drogas e as melhores músicas na voz sedutora de Gal”, relembra Cardoso.

Em 2017, “O Nome Dela é Gal”, de Dandara Ferreira, principal documentário sobre a trajetória da cantora, apresentou trechos das filmagens do show por Leon Hirszman, hoje depositadas na Cinemateca Brasileira, sem sincronia entre som e imagem.

Caetano esteve no centro de três momentos considerados decisivos por Gal: “Divino Maravilhoso” e os álbuns “Cantar” e “Recanto”, situados como inflexões de sua carreira.

“Guilherme Araújo tinha vislumbrado o potencial pop de Gal. Rogério [Duarte], que se opunha a Guilherme, via nela um esboço de figura contracultural. Os dois estavam certos. Gal sempre foi a mais próxima de mim no gosto radicalmente joãogilbertiano. Tínhamos gravado ‘Domingo’ logo antes da virada tropicalista. Na Bahia, antes de virmos, na esteira de Bethânia, para o Sudeste, Gal já era a minha preferida estilisticamente falando”, afirma Caetano.

“A virada tropicalista se provou necessária para nós desde 1966, Gil e eu lideramos —e Gal provou, em 68, que podia ir de João Gilberto a Janis Joplin em ‘Divino Maravilhoso’ e, mais longe ainda, no ‘Fa-Tal’ do começo dos 70”.

Os sons psicodélicos de “Fa-Tal” se amansariam no álbum “Cantar”, um retorno ao canto suave e um passo adiante em sua coragem artística. “‘Cantar’ era uma retomada da origem, mas já amadurecida na revolução por que passara: ela cantava Donato, com Donato, ganhava arranjos deste e de Perinho Albuquerque, arrasava em uma superpop e ultracomplexa composição de Gil. Era a Gal do para sempre”, diz Caetano.

“Orgulho-me muito de ter imaginado e produzido esse disco. Os jovens de hoje que o admiram não sabem que ele foi mal recebido pela crítica (até Nelson Motta falou mal do show relativo a ele) e até pelo público. Décadas depois fiz com ela ‘Recanto’, dizendo que somos fiéis a toda essa história. E ela foi fundo ao fazê-lo.”

À época de “Fa-tal”, aos 26 anos, sem intuir seu próprio mito, Gal se preocupava somente em viver, mergulhar e cantar.

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