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Alcino Bonella e Peter Singer

Infectar voluntários é eticamente aceitável e pode acelerar produção de vacinas contra Covid-19

Brasil deve realizar desafios humanos, que geram benefício coletivo com riscos em grupo menor de pessoas

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Alcino Bonella

Professor titular de filosofia da UFU (Universidade Federal de Uberlândia)

Peter Singer

Professor de filosofia e bioética da Universidade Princeton e autor de "Ética Prática" e "Libertação Animal", entre outros livros

[RESUMO] Testes em que voluntários são intencionalmente infectados com Sars-CoV-2 podem melhorar substancialmente o desenvolvimento de vacinas contra a Covid-19, sustentam autores. Ainda que tenha riscos, o método é eticamente aceitável no Brasil, país com sistema consolidado de saúde, e permite que participantes altruístas façam o bem para a coletividade.

Os testes clínicos chamados de desafio humano (TDH) para a Covid-19 são formas de avaliar e desenvolver vacinas que envolvem, em um ambiente controlado, infectar intencionalmente, com uma versão do vírus Sars-Cov-2, de 100 a 200 voluntários plenamente conscientes de todo o processo.

Tais testes não são novos —já ajudaram a desenvolver vacinas, por exemplo, para febre amarela, febre tifoide, cólera, influenza, malária e dengue. Entretanto, eles são considerados mais arriscados que a forma usual de verificar a segurança e eficácia de vacinas.

No ano passado, a Organização Mundial da Saúde aprovou o uso potencial de testes de desafio, mas não estabeleceu quando ou sob que condições mínimas isso seria posto em prática, já que tal método só é aplicado se houver um tratamento eficaz para a doença, se for muito difícil fazer a pesquisa de maneira tradicional (no que é conhecido como pesquisa clínica de fase 3) ou em situações de escassez de vacinas.

Farmacêutico, de luvas azuis, segura uma seringa, enquanto prepara dose de vacina contra a Covid-19 em centro de vacinação temporário em Birmingham, na Inglaterra
Farmacêutico prepara dose de vacina contra a Covid-19 em centro de vacinação temporário em Birmingham, na Inglaterra - Oli Scarff - 4.fev.21/AFP

No caso da Covid-19, ainda faltam medicamentos eficazes para tratar aqueles que ficarem muito doentes nos testes. Entretanto, agora há conhecimento e manejo clínico para reduzir significativamente o risco de morte.

Fora isso, é cada vez mais difícil fazer o estudo clínico tradicional da fase 3. Nessa etapa, milhares de participantes voluntários recebem a vacina testada ou um placebo e voltam para casa, tomando as precauções habituais para não serem infectados. À medida que alguns deles naturalmente contraem o vírus, são então estudados pelos pesquisadores.

Esse método é mais demorado em termos de determinação de eficácia e segurança, mas produziu bons resultados no ano passado, com a intensa e qualificada atenção científica internacional. Temos várias vacinas já aprovadas para uso, mas a produção ainda é lenta e insuficiente.

Há mais de cem vacinas para Covid-19 em estudo no mundo, das quais 17 no Brasil, algumas delas entrando agora na fase clínica, como a Butanvac, a Versamune e a Spintec.

Os desafios humanos forneceriam informações mais rápidas e precisas sobre tratamentos e vacinas candidatas, bem como mais conhecimento sobre o curso da doença.

Poderíamos desenvolver mais imunizantes, melhorar os de primeira geração, readaptá-los às novas variantes do vírus e também descobrir plataformas de produção e distribuição mais adequadas para a vacinação em larga escala nos países em desenvolvimento.

Os estudos de fase 3, ainda importantes, poderiam ser feitos com menos voluntários e com as vacinas candidatas mais promissoras, já em processo de certificação com os dados obtidos nos testes de desafio.

Com o avanço da vacinação e a consequente diminuição de casos, torna-se mais complexa a realização da fase 3, e também mais difícil justificar o uso de placebo. Esse cenário deixa os TDHs ainda mais importantes, pois ajudam a superar essas dificuldades.

O Reino Unido iniciou neste ano os desafios humanos: em março, um teste de dosagem, liderado pelo Imperial College; em abril, um teste de reinfecção, na Universidade de Oxford.

Será, contudo, essa forma de pesquisa eticamente aceitável? Argumentamos que sim e também defendemos que a aprovação e o uso de tais estudos devem começar agora. Além disso, dado que em alguns países, como o Brasil, existem múltiplos sistemas que proporcionariam maior segurança aos participantes e à sociedade, os TDHs devem realmente ser utilizados.

No caso do Brasil em particular, temos três sistemas: o Sistema Único de Saúde (SUS), público, universal e gratuito; o sistema de avaliação e vigilância ética —Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) e Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), duas instituições consolidadas de monitoração—, e um sistema de excelência em pesquisa científica e tecnológica.

Com isso e grupos de pesquisadores atuando coordenadamente, talvez em uma força-tarefa nacional, estarão presentes condições adequadas para garantir a integridade ética e metodológica para testes de desafio bem-sucedidos.

O principal argumento contra os TDHs é o risco para os participantes. Como já afirmamos, não há nenhum medicamento totalmente eficaz para tratar os voluntários que adoecessem, embora existam alguns parcialmente eficazes que, com manejo clínico correto, mitigam riscos. Também não podemos desconsiderar a chance de efeitos colaterais a médio e longo prazo, às vezes graves, que poderiam afetar vários órgãos. Em casos mais drásticos, o voluntário pode vir a morrer.

Contudo, nós já aceitamos que jovens enfrentem guerras ou pratiquem esportes radicais, ou, se forem profissionais de saúde, trabalhem corajosamente na linha de frente contra a Covid-19. Além disso, se os testes de desafio fossem conduzidos como defendido pela organização internacional 1DaySooner, que tem uma ramificação no Brasil, haveria uma redução substancial dos riscos, pois os participantes seriam mais jovens e saudáveis, e não de grupos vulneráveis da sociedade (tais como presidiários ou pessoas com transtornos mentais), com avaliação psicológica prévia de sua autonomia e seu altruísmo.

Os voluntários teriam assistência médica imediata e de alta qualidade se necessário, em instalações de cuidados especiais. De resto, todos nós já corremos sérios riscos de adoecer em nossa vida cotidiana, dado o cenário pandêmico do Brasil.

Também defendemos que, se os participantes, plenamente informados, são genuinamente altruístas, então devemos aceitar sua generosidade e respeitar sua vontade. Fazê-lo é levar a sério sua autonomia e seus direitos individuais e, ao mesmo tempo, buscar o maior bem para o maior número de pessoas.

Os testes de desafio são uma chance de gerar benefício muito grande, atingindo milhões de indivíduos, enquanto seus riscos recaem em algumas centenas de pessoas. Tudo isso deve ser levado em conta.

Alguns podem argumentar que há benefícios e há sistemas de monitoramento, mas ainda há a questão ética. A nosso ver, a questão ética é respondida precisamente na comparação imparcial das consequências previsíveis de decisões alternativas.

Nosso raciocínio moral deve ser comparativo, baseado em uma variedade de princípios e argumentos, não apenas na preocupação com riscos e danos assumidos pelos voluntários. Por exemplo, os princípios de beneficência, autonomia e equidade, comumente invocados pelos comitês de ética em pesquisa, justificam suficientemente bem os TDHs.

O raciocínio moral, como aquele baseado na regra de ouro (fazer aos outros o que gostaríamos que fizessem a nós, se estivermos na posição deles), torna injustificável proibir os estudos de desafio.

Muitos membros do movimento internacional Altruísmo Eficaz, com grupos no Brasil, apoiam esses testes. O movimento incentiva ações de solidariedade individual com capacidade cientificamente comprovada de ter um alto impacto na diminuição do sofrimento de seres humanos e outros animais.

Pensemos no indivíduo que decide doar um rim. Trata-se de um procedimento arriscado (1 morte a cada 3.400 casos), mas realizado pelo doador de forma autônoma e altruísta, visando fazer um bem significativo a outro indivíduo, sendo assim considerado, em todo o mundo, eticamente aceitável.

Tal doação, entretanto, é muito mais arriscada que ser parte de um teste de desafio humano na Covid-19, para o qual estudos estimam a possibilidade de morte de 1 em 40 mil ou até de 1 em 125 mil.

Por todas essas razões, concluímos que os testes de desafio são éticos e deveriam ser realizados —especialmente no Brasil, que, além da potencial coordenação e proteção através do tríplice sistema mencionado acima, conta com milhares de jovens voluntários, inscritos na 1DaySooner ou no Instituto Butantan, dispostos a participar de pesquisas clínicas. É o momento de aceitar, com coragem e cuidado, o desafio.

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