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Inácio Araujo

Entendi Pasolini quando vi 'Salò' e extrema direita lançava bomba em cinema

Crítico comenta sua relação com os filmes do diretor italiano, que faria cem anos

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Inácio Araujo

Crítico de cinema da Folha

[RESUMO] Crítico conta como uma exibição de ‘Salò’ em Paris em 1976, enquanto grupo de extrema direta lançava bomba contra o cinema, o fez entender a maneira radical com que o cineasta, que faria cem anos neste sábado (5), retratava nas telas o horror da sociedade italiana do pós-guerra.

A primeira vez que me senti realmente próximo de Pasolini foi quando ele tomou posição a favor dos policiais contra os estudantes revoltosos de 1968. Meu sentimento foi mais motivado por ele se opor ao senso comum, ao óbvio, do que por qualquer outra coisa.

Afinal, naqueles tempos a polícia, ao menos aqui no Brasil (imagino que a italiana fosse um pouco mais delicada), atacava as passeatas com a cavalaria duplicada por pastores alemães, e era preciso correr e encontrar algum refúgio para escapar das pancadas.

Cena do filme 'Salò, ou os 120 Dias de Sodoma' (1975), do cineasta e poeta italiano Pier Paolo Pasolini - Reprodução

Os filmes mesmo de Pasolini eu quase sempre detestava. Ora me pareciam de uma carolice insuportável (vale sobretudo para "O Evangelho Segundo São Mateus"), ora desnaturavam Totò ("Gaviões e Passarinhos"), ou, pior, abusavam de um simbolismo quase infantil ("Teorema"), com aquele anjo saltitante que parecia querer tomar o lugar do anjo exterminador de Buñuel.

Dê-se um desconto: eu era apenas um garoto pedante, mas, para ser bem sincero, não vejo as coisas tão diferentes assim. A exceção, a grande exceção, é "Mamma Roma" (1962): alguém mostrou bem como Pasolini, naquele momento em que o cinema italiano surfava nas ondas favoráveis do "milagre italiano", era quem olhava para os esquecidos do milagre.

O tempo seguinte não colaborou para que eu simpatizasse mais com o poeta-cineasta. Pior: seus "Contos de Canterbury" (1972) e "O Decameron" (1971) me soaram tremendamente falsos; aquela felicidade, o gosto da vida que transbordavam desses filmes me pareceram postiços.

Pergunto-me se veria as coisas de outro modo, hoje. Lembro-me de que não tinha nenhum compromisso com a crítica de cinema, não precisava prestar contas de ideias, defeitos, de nada que visse nos filmes. Via e pronto. O fato é que nunca mais topei com eles, e também não os procurei demais.

Reação bem diferente tive quando assisti a "Salò, ou os 120 Dias de Sodoma" (1975), em um dia de maio de 1976, num cinema com uma grande porta de vidro, que na minha lembrança ficava no bairro parisiense Montparnasse.

Eu havia acabado de chegar a Paris, onde moraria por quase quatro anos. Naquela época, só se falava de "Salò". Depois falo da impressão que me deixou o filme —em todo caso, ela foi tão forte que o estrondo que ouvi durante a projeção me pareceu que vinha da minha cabeça. Por alguns instantes acreditei nisso, porque ninguém se mexia na plateia.

Apenas no final, ao sair da sala, foi possível topar com os estilhaços da porta de vidro espalhados em parte pelo hall do cinema, em parte na calçada da frente.

Cena do filme 'Salò, ou os 120 Dias de Sodoma' (1975), de Pier Paolo Pasolini
Cena do filme 'Salò, ou os 120 Dias de Sodoma' (1975), de Pier Paolo Pasolini - Divulgação

Na bilheteria explicaram que alguém havia passado de carro em baixa velocidade, gritado alguma palavra de ordem de extrema direita e jogado uma bomba na direção do cinema. Uma bomba, foi o que se disse.

Uma pedra bastaria, pensei, para arrebentar a vidraça, mas uma bomba daria mais certeza do estrago. A mensagem, em todo caso, era clara: a direita não gostava desse filme.

Entende-se: a República de Salò foi o nome dado à Itália, ou à parte da Itália controlada diretamente pela Alemanha nazista, no momento em que os aliados já entravam pelo sul do país durante a Segunda Guerra. Mussolini continuou à frente do governo, mas o controle mesmo cabia aos alemães, com a ajuda das milícias fascistas.

O período foi de bem mais de 120 dias. Estes diziam respeito ao livro do Marquês de Sade que o filme tomou emprestado. Não importa o que no filme pudesse se assemelhar ao livro. Importa, ao menos para mim, que naquele momento percebi a cabeça real de Pasolini, a realidade pantanosa em que sentia viver e que talvez procurasse evitar recorrendo seja à fé (em Deus e em Marx), seja à crença na beleza e na vida.

Pasolini vivia no horror de "Salò", o horror, no caso, dos homens ricos da Itália fascista, os senhores desses atos; senhores do corpo dos outros: a baixeza, o suplício, a humilhação, feridas tratadas com sal, a depravação, uma dor sem fim. Tudo isso está presente, e penso que tudo isso o ocupava, apenas assim eu podia entender o que Pasolini levava à tela com tamanha radicalidade. Era uma visão crua do inferno, não menos que isso.

Não sou um bom leitor de poesia, quase sempre não entendo o que dizem os poetas, mas no caso de Pasolini esse inferno irrompe por vezes cristalino:

"Basta um pouco de paz pra revelar, /dentro do peito a angústia,/ límpida, como o fundo do mar /em um dia de sol. Tu reconheces, / sem o provar, o mal, / ali, em tua cama, ombros, coxas / e pés abandonados".
A paz revela a angústia, diz em seu poema, assim como um pouco de paz desperta a guerra ou um pouco de sol, nossos atos mais vis.

Foi esse tipo de paradoxo que me levou de volta ao primeiro Pasolini, o de "Accatone" (1961), o de "Mamma Roma", que me pareceram a um primeiro (e míope) olhar a expressão de um neorrealismo atrasado. Só então pude vê-los de outra maneira, a começar pela epígrafe do primeiro desses filmes, onde se encontram um anjo do céu e um anjo do inferno. E o anjo do inferno grita: "Por que me privas do céu?"

A epígrafe é tirada do "Purgatório" de Dante (enquanto "Salò" é o próprio inferno) e diz respeito aos rufiões, a essa malta de inúteis, de lúmpens, incapazes de deixar essa condição parasitária. Ou à valente "Mamma Roma", prostituta em busca de um caminho novo, de uma nova vida, que lhe permita encarar seu filho, a quem tenta evitar que tome contato com sua maneira de viver.

Penso que a epígrafe diz respeito, afinal, a cada humano, feito do alto e do baixo, de céu e inferno, do melhor e do pior. Não se tratava de neorrealismo atrasado, mas, como me revelou alguém, já não me lembro quem, talvez Ignacio Fuentes, crítico colombiano desesperadamente cinéfilo, do último neorrealista. Aquele que, enquanto o cinema italiano nadava nas águas doces do progresso social, voltava-se aos esquecidos do "milagre econômico".

Mas volto ao que senti saindo do cinema após "Salò", ou antes, ao que me ocorreu ao mesmo tempo em que atravessava os destroços da porta do cinema de que acabava de sair: "O que mais ele poderia dizer depois disso? O que mais ele poderia ter filmado?".

A sensação era a de um final irrecorrível. Pasolini morrera alguns meses antes daquela exibição. À extrema direita não bastava sua morte, era preciso amedrontar espectadores ou donos de cinema, ou ambos (mas aqueles eram bons tempos, em que os neonazistas mal punham o nariz para fora; as coisas ficaram por isso mesmo).

É curioso como aquele filme me levou quase de imediato ao "Viver a Vida" (1962), de Godard, que por sua vez levava até "A Paixão de Joana D’Arc" (1928), de Dreyer, ao diálogo entre o monge interpretado por Antonin Artaud e Joana d’Arc: "E qual será sua libertação?" "A morte".

A morte de Pasolini, o delito italiano, como afirma Marco Tullio Giordana no título de seu filme de 1995. Uma morte que não podemos encarar sem pensar na baixeza, na vilania, na solidão, na dor infligida ao cineasta-poeta.

A morte como último poema, como um Cristo reencontrado, a lembrar que o fascismo de "Salò" estava, de resto, longe de morrer.

Quem foi Pasolini

Nascido em 1922, começou a escrever poemas aos 7 anos e se formou em literatura na Universidade de Bolonha em 1945.

Em 1950, se mudou para Roma e, em 1955, publicou seu primeiro romance, 'Meninos da Vida'. O governo italiano abriu um processo contra Pasolini e seu editor por obscenidade.

Em 1961 —quando já era reconhecido como intelectual da Itália pós-guerra, com sua produção de ensaios, ficção e poesia—, Pasolini lançou seu primeiro longa-metragem, 'Accattone'. Na estreia em Roma do filme, centrado na história de um cafetão e uma prostituta, um grupo de neofacistas promoveu uma manifestação contra o diretor, visto como imoral e atacado por ser homossexual. Agressões desse tipo o acompanharam ao longo da vida.

Até sua morte, em 1975, Pasolini realizou outros 11 longas de ficção. A chamada trilogia da vida —composta de 'O Decameron', 'Os Contos de Canterbury' (vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim), e 'As Mil e Uma Noites'— explora a sexualidade e as interdições religiosas e critica a sociedade de consumo, formando um conjunto de destaque na sua obra.

'Salò, ou os 120 Dias de Sodoma' —um dos filmes mais controversos da história, com seu retrato extremo de torturas físicas, mentais e sexuais de adolescentes por autoridades fascistas— foi finalizado semanas antes do assassinato brutal do cineasta.

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