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Marcos Augusto Gonçalves

Há cem anos, Mário de Andrade odiou os farialimers e fiespers da época

Escaramuças em torno de cartas-manifesto atestam pequenez e hipocrisia da elite brasileira

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Marcos Augusto Gonçalves

Editor da Ilustríssima e editorialista. Foi editor da Ilustrada, de Opinião e correspondente em Milão e em Nova York

[RESUMO] Disputas de entidades empresariais a respeito da divulgação de cartas-manifesto, encenação de defesa da normalidade democrática, transparecem descompromisso da elite brasileira com princípios civilizatórios e falta de visão e coragem de assumir o destino que o país poderia ter.

A chamada elite brasileira é, convenhamos, um vexame. A movimentação da classe empresarial missivista para encenar a coreografia de defesa da normalidade democrática e fingir que não apoiou a aventura golpista e a eleição de Bolsonaro é funesta.

A Fiesp não tem nenhuma condição ética —e nem mais dinheiro no bolso— para falar nada que interesse aos brasileiros. É a decadência sombria de uma pseudoburguesia industrial que já teve seus momentos, diga-se, mas que virou suco aguado de oportunismo.

E as finanças mais bem-sucedidas, pretensamente cosmopolitas e polidas não ficam muito atrás —têm mais força, é verdade, mas nenhuma superioridade moral.

As escaramuças em torno das tais cartas-manifesto à nação são, no final das contas, um atestado da pequenez hegemônica de nossos ricos que só pensam em acumular e medir o tamanho do pênis endinheirado com os colegas da roda da fortuna. Transparecem o conhecido descompromisso com princípios civilizatórios e a falta de visão e coragem de assumir o destino luminoso que poderíamos ter.

Medrosos, recuam a cada oportunidade de dar o passo decisivo para fazermos um país inclusivo e potente. O apoio que muitos explícita ou maldisfarçadamente prestaram à escalada da direita fascista entre nós, com o concurso de intelectuais sem espinha e comentaristas midiáticos serviçais e alpinistas sociais, é um dos mais deprimentes capítulos da nossa história.

Agora o medo de Lula volta a comandar os que encheram os bolsos no governo do presidente petista. Falta de ossos. Não é mais digerível, se é que em algum momento foi, aceitar que a obsessão doentia e sem ética desse arrivismo bilionário, num mundo às voltas com desigualdades extremas, seja força inquestionável. Tudo pode, menos o capital perder.

Ora… É preciso que passemos por uma nova abolição, como já disseram alguns, entre os quais aquele velho compositor baiano.

Nesses cem anos do modernismo, que se completam em fevereiro de 2022, e nos 200 da Independência, que também se avizinham.. o que temos? Continuam valendo os versos do poema centenário de Mário de Andrade.

Reina a digestão bem-feita de São Paulo.

“Ode ao Burguês” falava dos farialimers e fiespers do início do século 20. Escrito para o agora clássico “Pauliceia Desvairada”, publicado em 1922, nada mais atual. Reproduzo aqui para que não esqueçamos.

"Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampeões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns milreis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam o "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
"– Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar... – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giôlhos
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fú! Fora o bom burguês!...

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