Tom Kernan está bêbado. Ao tentar descer a escada que leva ao banheiro do pub, pisa em falso e cai. Um amigo o leva para casa. Convalescente, recebe visitas, que começam uma discussão cômica sobre religião, atrapalhando-se em citações de latim. Alguém aparece com uma garrafa. A história termina na igreja, com o sermão pedestre de um padre.
Esse é um resumo mínimo de "Graça", conto de James Joyce. No meio da narrativa há uma epifania discreta: "The light music of whisky falling into glasses made an agreeable interlude". Algo como: "A música suave do uísque nos copos criou um interlúdio agradável." Joyce escrevia como o diabo.
E escrevia sobre o que conhecia. Muitos de seus personagens eram figuras com quem havia esbarrado nas ruas de Dublin, "difíceis de atravessar sem que se encontre um pub". Quando "Ulisses" foi publicado, há cem anos, o temor geral era se reconhecer em suas páginas, consideradas obscenas.
O momento era de tensão, a poucos meses da guerra civil na Irlanda, provocada pelo acordo que dava autonomia à nova república, antes parte da monarquia britânica. Integrantes do partido Sinn Féin e do exército republicano, o IRA, insatisfeitos com os termos do documento, rebelaram-se violentamente. A paz só veio um ano depois. A ratificação do acordo faz exatos 100 anos nesta sexta, 7.
Na edição de agosto de 1922 em que lamentava o assassinato de Michael Collins, o grande herói da independência, o tabloide The Separatist defendia "Ulisses" como uma ruptura com a cultura inglesa e, portanto, uma peça de resistência.
À essa altura, Joyce vivia em Paris, onde terminou seu livro mais famoso depois de anos de deambulações pela Europa. Mesmo longe há tempos, ele descreve a capital irlandesa com uma quantidade de detalhes fabulosa. Não é exagero dizer que as sentenças desenham um mapa da cidade. É nessas trilhas e linhas que flana a consciência dos personagens.
Quem abre o livro por acaso ouve estes pensamentos em meio a risadas, bravatas, brindes e palavrões. Kernan e os demais pândegos de "Graça" ressurgem no romance, onde continuam bebendo alegremente, tropeçando numa floresta genial de estilos e neologismos.
O próprio pai do autor, investidor malfadado de uma destilaria de uísque, se mistura à impressionante multidão que habita o livro ("o pai é um mal necessário", diz Stephen Dedalus, alter ego de Joyce).
Lançado no começo da Segunda Guerra, "Finnegans Wake", também é povoado por bares e homéricas libações. Chega a incluir homenagens criptografadas ao uísque [John] Jameson, o favorito de Joyce, com o qual divide as iniciais.
O escritor explicou a preferência: "todos os uísques irlandeses usam a água lamacenta do rio Liffey; e todos a filtram, menos o Jameson, o que lhe dá essa qualidade especial." O título do livro remete a uma canção em que um morto é revivido pelo uísque. O que é muito natural: a palavra vem do gaélico uisce beatha e significa água da vida.
Aparentemente, o uísque não é escocês: nasceu no país de Joyce, Beckett, Oscar Wilde e Yeats. Entre os brindes irlandeses existe esse: que seus bolsos sejam pesados, que seu coração seja leve e que a sorte lhe persiga noite e dia. E que no fim do ano venha a virada. Assim seja.
LUCK OF THE IRISH
Ingredientes
- 30 ml de uísque irlandês
- 30 ml de vermute doce
- 10 ml de Chartreuse Verte
- 4 esguichos de Angostura
Passo a passo
Mexa os ingredientes com gelo e coe para um copo old-fashioned com gelo. Decore com uma folha de hortelã.
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