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Marcos Lacerda

Teses sobre estruturas de dominação podem esconder interesses mesquinhos

Muitas vezes, atores sociais se importam mais com benesses que com lutas de emancipação

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Marcos Lacerda

Doutor em sociologia pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pós-doutorando na UFPel (Universidade Federal de Pelotas)

[RESUMO] Teses baseadas na existência de estruturas de dominação difusas têm o problema de desconsiderar lógicas complexas do campo intelectual, cultural ou acadêmico, em que disputas por benefícios econômicos e simbólicos são ferozes.

Quem se atenta minimamente ao debate público brasileiro uma hora ou outra toma conhecimento de uma série de teses que se baseiam na ideia da existência de estruturas de dominação difusas. São teses com pretensão totalizante, que querem mesmo abarcar um amplo espectro de relações sociais, históricas, políticas, algumas até mesmo afetivas.

Isso confere a elas a falsa condição, bastante sedutora, de serem capazes de explicar fenômenos sociais muito complexos e dá também uma certa valoração moral, tendo em vista o fato de ecoarem problemas reais da sociedade brasileira.

Um dos problemas dessas teses, no entanto, é que elas acabam, pela sua própria lógica, desconsiderando aspectos específicos do campo intelectual, cultural ou acadêmico. Existe de fato uma lógica própria de validação nesses campos e, muitas vezes, ela não deriva das tais dimensões estruturais.

Bom, quem convive em alguns desses campos sabe que não tem mocinho nem mocinha: as disputas são bem selvagens pelo controle e monopólio de benefícios econômicos, simbólicos e imaginários.

Aliás, como bem o sabemos, em ambientes de recursos escassos vale tudo —tudo mesmo. Progressistas se transformam em conservadores e vice-versa, em um instante e para todo o sempre. Até a próxima disputa, e assim vai.

Essas categorias são usadas, aliás, como forma de agregar valor à marca do ator social, muitas vezes bem mais interessado nas benesses do campo que em supostas lutas de "emancipação".

Vamos imaginar a seguinte situação. O sujeito ali vive uma vida pacata de professor universitário. Tem lá, claro, um bom salário. De repente, é alçado à condição de uma espécie de profeta que vai anunciar a boa nova e a salvação dos desgarrados da terra (eles existem, claro, e são muitos).

A vida do sujeito deu uma virada fenomenal. Agora, ele é uma espécie de farol da bem-aventurança. A sua tese decifrou o sentido da sociedade brasileira, dizem os muitos bajuladores. Está lá no Roda Viva. Tem coluna em jornal de grande circulação. Alguns, os com menos capacidade de pensar, o chamam de "nosso mestre". Ou se for uma autora, "nossa mestra".

Bom, como não há tese alguma que decifre sentido nenhum, já que teses são limitadas, têm contradições e precisam sempre de reparos, começam a aparecer contrapontos. Alguns muito bons, outros nem tanto.

De repente, o sujeito que estava ali todo vaidoso começa a perder a sua posição. Claro que ele vai espernear. A essa hora, já montou um rebanho de discípulos. Também ganha muito dinheiro com palestras e convites para a televisão. Tudo isso, ao lado do prestígio e da condição de anunciador da boa nova, começa a correr o risco de se perder.

De repente, ele pode vir a ser novamente o professor ali que vive uma vida pacata, ainda que tenha bonanças. Suas teses passam a ser aquilo que sempre foram: teses e, ao que parece, fracas, limitadas, que tiveram a sorte de ser infladas por um conjunto de interesses que envolve o mercado, a velha e manjada má-consciência de classe média alta, talvez até uma mediocrização geral do campo intelectual, ou mesmo a consciência coletiva de um problema real, vá saber.

Ele já não é a celebridade intelectual que tem toda a conivência interessada das grandes mídias e corporações para dizer suas frases de efeito, para apresentar visões que podem ser até mesmo superficiais —tanto da realidade social, histórica e política quanto cultural, estética, afetiva.

Ele se mostra raivoso, mal consegue controlar o incômodo. Chama os que ousam o criticar de "arruaceiros", "oportunistas", o que for. Suas ações respondem não a algum valor último ou a um famigerado problema estrutural, mas a interesses bem específicos, vinculados diretamente ao campo em que atua e dependente da lógica desse campo.

Em outras palavras, por trás das lamúrias do tipo "estou cansado de lutar por humanidade" e outras pieguices estrategicamente calculadas para causar comiseração ou mesmo por trás do desfiladeiro de ofensas, agressões e carteiradas, inclusive étnicas, raciais ou de gênero, pode se esconder mesmo interesses muito mais mesquinhos, vinculados à possível perda dos recursos econômicos e simbólicos que o ator social ocupa no âmbito do campo.

Em suma, no fundo o que ele teme de fato é correr o risco de perder a condição de classe confortável e os benefícios simbólicos, econômicos e imaginários da posição dominante em um campo bem específico, cuja lógica nada ou pouco tem a ver com as estruturas de dominação.

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