Helio de la Peña explica por que passou a apoiar cotas raciais

Humorista diz que aprofundamento do debate sobre racismo o fez mudar de posição

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'Jardim Suspenso', de Pedro Neves Portas Vilaseca Galeria/Divulgação

Fernanda Mena
Fernanda Mena

Mestre em direitos humanos pela LSE (London School of Economics), doutora em relações internacionais pela USP e repórter especial da Folha

A trajetória de Helio Antonio do Couto Filho, 62, é marcada por excepcionalidades que moldaram sua primeira posição sobre cotas raciais: era contra.

A mais conhecida dessas singularidades é o fato de ter se tornado Helio de la Peña, um dos únicos humoristas negros de sua geração a fazer sucesso na maior emissora do país. Primeiro, só atrás das câmeras, como roteirista da hilária TV Pirata. Depois, como idealizador e um dos protagonistas do longevo Casseta & Planeta Urgente.

O humorista Helio de la Peña, que mudou sua opinião e hoje é favorável às cotas raciais nas universidades - Lucas Seixas/Folhapress

A fama o protegeu das batidas policiais antes comuns, na juventude, e de outras manifestações mais contundentes do racismo à brasileira.

De la Peña, contudo, já vinha de um percurso excepcional. Nascido no subúrbio carioca, em uma família de classe média baixa, pôde estudar em escola de elite e cursou engenharia em uma universidade pública federal. Sempre rodeado de poucos colegas negros.

"Eu achava que, se você se esforçasse, se você corresse atrás, conseguiria a sua vaga na universidade", explica. A maior presença da perspectiva de ativistas, intelectuais e influenciadores negros no debate racial brasileiro o levou a rever esse posicionamento. "Ouvi outras vozes e mudei meu ponto de vista."

Por que era contrário às cotas raciais nas universidades? Sou negro de origem pobre, suburbano do Rio de Janeiro. Fui alfabetizado em uma escola pública, estudei em um colégio de elite no fundamental 2 e no ensino médio. Fui aprovado para o curso de engenharia na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 1978 sem precisar de curso pré-vestibular. Não havia sistema de cotas. Eu achava que, se você se esforçasse, se você corresse atrás, conseguiria a sua vaga na universidade.

Sua trajetória individual influenciou esse primeiro posicionamento? Sim, ela moldou por muitos anos a minha opinião. Minha mãe era professora primária, meu pai trabalhava como escriturário em uma empresa privada. Ambos davam valor à educação. Morava no subúrbio do Rio, no asfalto, porém. Não sofríamos privações materiais.

Era um lar estruturado, com pais presentes e que tinham condições de me proporcionar uma boa formação escolar. Era uma prioridade deles. Não tinha parado para pensar a respeito, assim não levava em conta que reunia condições atípicas para uma família negra e periférica.

Havia colegas negros na escola e na faculdade? Na escola, eram raríssimos os colegas negros. Na faculdade, tinha um pouco mais, mas muito pouca gente. Em cursos muito disputados, a tendência era de haver poucas pessoas negras. Eu acho que a proporção de negros nesses cursos continua bem desigual, embora tenha aumentado o acesso.

Como projetava as consequências das cotas raciais nas universidades e como as avalia hoje? Avaliava de forma cética, como muitos, questionando o desempenho na universidade daqueles que não tiveram a chance de uma boa formação nos ensinos médio e fundamental. Hoje, os dados comprovam que os estudantes que ingressam por cotas raciais têm se saído, na média, tão bem quanto os não cotistas. Fico feliz com este resultado.

Também passei a perceber que as cotas sociais acabavam democratizando a universidade do ponto de vista socioeconômico, mas muito pouco do ponto de vista racial, porque a maioria das pessoas que entravam eram brancas.

Foi isso o que fez você mudar de opinião sobre cotas raciais? Foi um processo. A discussão cresceu na sociedade. Ativistas do movimento negro tiveram espaço na mídia para apresentar seus pontos de vista.

Ao mesmo tempo, me aproximei de ONGs que promoviam ações sociais nas favelas e junto à população negra. Conversei com lideranças como Celso Athayde e Preto Zezé, da Cufa [Central Única das Favelas], Rene Silva, da Voz das Comunidades, e com influenciadores, como AD Junior. Li textos de Djamila Ribeiro e Flávia Oliveira. Enfim, ouvi outras vozes e mudei meu ponto de vista de uns anos para cá.

Você, antes da fama, sofreu racismo? E depois? Eu sofri racismo antes da fama e sofri racismo depois da fama em situações em que não fui reconhecido. Quando você passa a ser uma figura pública, o tratamento é outro, sabe. Antes de ser famoso, era comum ser parado pela polícia toda hora.

Tem um livro do escritor americano Paul Beatty chamado "O Vendido", em que ele fala que a pessoa preta, quando se torna famosa, muda de etnia: vira celebridade. Essa brincadeira mostra como o racismo atinge pessoas que não são figuras conhecidas e como ele é amenizado quando você se torna uma figura pública.

Como avalia o debate sobre racismo no Brasil? Durante anos, o assunto foi tabu na sociedade. Trágicos episódios, como o assassinato de George Floyd, trouxeram o racismo para a pauta de discussões nas redes sociais e na mídia. A democracia racial no Brasil é pura fake news. É preciso sublinhar como o racismo se faz presente no dia a dia.

O reflexo disso é a ausência de negros em ambientes elitizados e em cargos de comando nas empresas, e a esmagadora maioria de negros nas estatísticas negativas ligadas a condições socioeconômicas, abordagens policiais, baixos desempenhos escolares etc. É preciso que essa discussão envolva também as pessoas que não são negras e, portanto, não são vítimas do racismo.

Existe resistência de pessoas brancas em debater esse tema? Acho que existe, sim. Primeiro, pelo fato de elas não verem tanta importância no debate porque aquilo não as afeta diretamente. Segundo, existe uma percepção da pessoa branca de que ela não comete nenhum ato de racismo, porque ela é bem-intencionada, é uma pessoa legal e tal. E ela não percebe que muitos atos são inconscientes.

Então, a pessoa fica extremamente ofendida quando você aponta uma derrapada racista, e a discussão se desvia para a sensibilidade daquela pessoa e como ela foi afetada pela acusação de racismo mais do que o sujeito que foi massacrado pela questão racial.

As pessoas têm que se despir um pouco e aceitar que a questão não vem delas, mas de uma sociedade em que, até pouco mais de um século, era muito natural as pessoas de pele preta serem mercadoria e não ser humano, em que negro era proibido de ir para escola, de comprar terras e várias outras informações que são muito pouco divulgadas.

As pessoas têm de aceitar que o olhar da sociedade conserva valores e que alguns desses valores devem ser discutidos e derrubados.

Helio de la Peña sentado no chão da sua casa
Helio de la Peña, ator e humorista, em sua casa, no Rio de Janeiro - Foto: Lucas Seixas/Folhapress

Helio Antonio do Couto Filho, 62

Ator e humorista, nasceu na na Vila da Penha, no subúrbio do Rio de Janeiro, e se formou em engenharia de produção na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Trabalhou como roteirista do programa TV Pirata e foi idealizador e um dos protagonistas do Casseta & Planeta Urgente. Escreveu e atuou nos filmes "Casseta & Planeta: a Taça do Mundo É Nossa" (2003) e "Casseta & Planeta: Seus Problemas Acabaram" (2006).

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