Descrição de chapéu Independência, 200

Livro retrata grupos esquecidos e conflitos entre elites regionais pré-Independência

'Independência do Brasil: a História que Não Terminou' ilumina realidade ampla a partir de microrretratos

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Naief Haddad
Naief Haddad

Repórter especial da Folha

[RESUMO] Parte de leva de obras lançadas nos 200 anos da Independência que tendem a se tornar referência, coletânea reúne ensaios que apontam distorções nos estudos sobre o início do século 19 e analisam impasses regionais ainda pouco lembrados.

Até meados do século passado, o processo de independência do Brasil costumava ser visto de maneira um tanto simplória por estudiosos como um arranjo envolvendo filho e pai portugueses (dom Pedro 1º e dom João 6º), com o aval do Império inglês.

Com o passar das décadas, novos estudos foram esmiuçando o intrincado jogo de forças econômicas, políticas e sociais daquele período, uma realidade marcada por contradições e impulsionada por fatores internos e externos.

O ator Caco Ciocler interpreta dom Pedro 1º na encenação 'Vozes da Independência', que ocorreu em 7 de setembro de 2022 no parque da Independência, em São Paulo - Zanone Fraissat - 7.set.2022/Folhapress

Nesse sentido, os lançamentos sobre o tema em 2022 atestam a maturidade alcançada pela historiografia brasileira.

O bicentenário trouxe à tona publicações que se tornam inescapáveis nessa seara a partir de agora, como "Dicionário da Independência do Brasil", obra de vocação enciclopédica organizada por Cecília Helena de Salles Oliveira e João Paulo Pimenta, e "Adeus, Senhor Portugal", de Rafael Cariello e Thales Zamberlan Pereira, além de relançamentos, como "A Outra Independência: Pernambuco 1817-1824", de Evaldo Cabral de Mello, e "Insultos Impressos", de Isabel Lustosa.

"Independência do Brasil: a História que Não Terminou" se junta a essa leva de livros que tendem a se tornar pontos de referência nos estudos da área. Reúne 12 ensaios assinados, em sua maioria, por professores ligados à USP.

Professor emérito dessa universidade e grande especialista no sistema colonial brasileiro, Fernando Novais abre o livro com um ensaio que une dois textos publicados por ele décadas atrás. Neste "Independência: dimensões e passagens", Novais se dedica, entre outros objetivos, a discutir as distorções que têm acompanhado os estudos sobre o início do século 19.

O texto está entre os bons momentos do livro editado pela Boitempo, mas a obra se revela mais interessante quando os autores se entregam a recortes bem específicos. Em outras palavras, "A História que Não Terminou" cresce quando apresenta microrretratos capazes de iluminar uma realidade mais ampla.

É o que faz Sérgio Guerra Filho, professor da UFRB (Universidade Federal do Recôncavo da Bahia), no ensaio "O protagonismo popular na guerra da Bahia (1822-1823)". Nesses conflitos, indica o autor, havia uma presença maciça de mulheres e homens pobres livres, além de libertos e escravizados. Esses grupos, contudo, passaram ao largo do reconhecimento e, claro, da historiografia tradicional. Salvo um caso ou outro, como a marisqueira negra Maria Felipa, da ilha de Itaparica, essas pessoas foram esquecidas, embora tenham participado de combates que resultaram em dezenas de mortes.

O projeto conservador das elites baianas trazia riscos. Como registra Guerra Filho, "ganhar a guerra, expulsando os portugueses e integrando a província da Bahia ao Império do Brasil, significava, inevitavelmente, armar e organizar um contingente populacional potencialmente rebelde". E rebeliões viriam nos anos seguintes.

Mais adiante, o livro desce ao Rio Grande do Sul para contar como a província se tornou um centro fornecedor de mulas para o abastecimento de Minas Gerais. Essa "indústria do transporte" movimentava os corredores fiscais de vilas no Paraná e em São Paulo.

Nesse ensaio, Camila Scaccheti, Guilherme Grandi e Luciana Suarez Galvão, os três da USP, descrevem como a comercialização dos animais de carga se tornou relevante para a economia da comarca paranaense e como a elite da região estava insatisfeita com a distribuição tributária imposta pela província paulista, à qual estava submetida.

Além das tensões muito conhecidas, como entre Brasil e Portugal, o país acompanhava impasses regionais hoje pouco lembrados, como esse que opôs São Paulo e Paraná. Em 1854, a região de Curitiba ganhou, enfim, o status de província.

Nessa época, o mercado editorial era incomparavelmente mais acanhado que os negócios das mulas, mas também passava por alterações expressivas. Em seu ensaio, Marisa Midori Deaecto, também da USP, mostra que os europeus estavam à frente da expansão de livrarias, bibliotecas e tipografias.

"Os profissionais brasileiros estão longe de se inserir neste circuito, pois lhes falta tanto a experiência acumulada pelos europeus durante séculos de organização dessas redes internacionais, quanto o capital para transpor os limites do mercado local", escreve.

O livro chega ao fim com "Celso Furtado e a (in)dependência do Brasil", de Alexandre de Freitas Barbosa (USP), Alexandre Macchione Saes (USP) e Roberto Pereira Silva (Universidade Federal de Alfenas). Eles reveem as reflexões do autor de "Formação Econômica do Brasil" a respeito do processo de emancipação do país.

Obsessivamente, como admitiu, Furtado buscou comparar os pilares das economias brasileira e norte-americana na primeira metade do século 19. Nosso atraso em relação aos EUA "tem sua causa não no ritmo do desenvolvimento dos últimos cem anos [1850-1950], o qual parece ter sido razoavelmente intenso, mas no retrocesso ocorrido nos três quartos de século anteriores", escreveu.

É um pensamento inquietante, que merece ser retomado, como faz este livro.

Independência do Brasil: a História que Não Terminou

  • Preço R$ 79 (306 págs.)
  • Editora Boitempo
  • Organizadores Antonio Carlos Mazzeo e Luiz Bernardo Pericás
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