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Dirce Waltrick do Amarante

Fabricação de supostos gênios desafia atuação dos críticos

Ser escolhido para o papel de artista extraordinário não é difícil nos dias de hoje

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Dirce Waltrick do Amarante

Tradutora e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina). Autora, entre outros livros, de "Para Ler Finnegans Wake de James Joyce" e "James Joyce e Seus Tradutores". Organizou e cotraduziu "Finnegans Rivolta", de Joyce

[RESUMO] Proliferação de supostos escritores extraordinários —resultado de conspiração que envolve questões editoriais, comerciais e de compadrio em um ambiente de elogios fáceis e desmedidos— é um empecilho para o trabalho dos críticos, que, como disse Ginzburg, muitas vezes se veem "sozinhos dizendo a verdade em meio a uma sociedade hostil".

Algo curioso parece estar acontecendo nestes últimos anos no Brasil: a proliferação de gênios na nossa cultura. Diria que nunca houve tantos autores extraordinários como agora na área da ficção, do ensaio e da tradução, por exemplo, e quase todos muito jovens!

Não é raro o leitor se deparar com adjetivos como "genial", "fenomenal", "brilhante" e "singular" em críticas, prefácios, textos de orelha... Livros com pouco mais de 200 páginas são vistos como estudos "completos e elucidativos" sobre um determinado assunto, o qual, aliás, já foi bastante esmiuçado por outros, em tomos volumosos.

Livros em estante de biblioteca
Livros em estante de biblioteca - Getty Images

Autores de um único livro são premiados e alcançam a notoriedade, quando não a admiração irrestrita, algo que muitos outros, com obra vasta, ainda não conquistaram. É claro que nenhum fã ou crítico sabe agora, no auge de seu entusiasmo, quantos desses autores festejados sobreviverão ao tempo.

Vale destacar, contudo, que a fábrica de genialidades não é nova. Em um ensaio de 1894 intitulado "Como tornar-se um gênio", o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw afirma que "os gênios não existem" e prossegue, com a ironia que lhe é peculiar: "Eu sou um gênio e portanto sei. O que há é uma conspiração para fazer de conta que os gênios existem e uma escolha das pessoas certas para assumir o papel imaginário de gênio. O difícil é ser o escolhido" (faz parte do livro "O Teatro das Ideias", organizado por Daniel Piza).

Mas, no Brasil, a meu ver, ser o escolhido para o papel de gênio não é mais tão difícil. A conspiração, que envolve questões editoriais, comerciais etc. tem buscado transformar cada lançamento em um novo best-seller e, para atingir esse objetivo, qualifica automaticamente o autor como genial. Os paratextos dos livros precisam, obviamente, reforçar essa ideia e faz-se isso convidando outros "gênios" para escrever sobre seus "iguais".

As relações pessoais também devem ser consideradas nessa conspiração: amigos escrevem sobre amigos de talento "extraordinário" e, assim, se revelam ainda mais amigos, ou verdadeiros cúmplices da mesma trama.

Cumprimentos e louvores são trocados e se cria, me parece, o Olimpo dos gênios, formado na sua maioria por jovens, porque neles está o futuro da conspiração. Os mais velhos, embora por vezes mais geniais, já teriam cumprido, ou não, o seu papel nesse complô, mas a verdade é que esses também podem merecer investimento e, de repente, se tornam quase um novo Guimarães Rosa.

Ocorre que, conforme se lê no ensaio "Liberdade de pensamento sem liberdade de criticar?", escrito nos anos 1990 pelo filósofo francês Jacques Bouveresse, "todos os pensadores famosos estão convencidos de sê-los apenas por causa de seus méritos. Os ‘pobres pensadores’ que gozam de uma celebridade injustificada são sempre os outros" (tradução de Claudia Berliner).

Diante desse cenário, alguns críticos podem se sentir desconfortáveis, afinal, afirma Bouveresse, "uma regra fundamental parece ser a de que o especialista sério e obscuro nunca tem fundamento para criticar o general (quero dizer, o ‘generalista’ brilhante e famoso)".

Ademais, como bem lembra o pensador, "o sistema e a lei do mercado, contra os quais se continua a protestar por obrigação, estão hoje, na verdade, aceitos e integrados", e o crítico que ousar seguir protestando poderá "correr o risco de passar por policial" ou ser acusado de basear sua tese a respeito de um autor, um livro, uma tradução apenas "na incompreensão, na malevolência e no ódio (do autor em questão, da disciplina que ele representa ou do pensamento geral)".

É bem verdade, conclui Bouveresse, que "uma crítica pode estar inspirada numa certa hostilidade, no ressentimento ou na inveja, e ainda assim ser pertinente, ou não". "É certo que o ressentimento, em muitos casos, enceguece, mas às vezes também permite ver melhor que a amizade ou a devoção."

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A escritora italiana Natalia Ginzburg em retrato feito em Roma em 1989, quando ela tinha 73 anos - Francesco Gattoni/Divulgação

Para o autor francês, os gênios ou os escolhidos para o papel não levam a sério a crítica, "só mesmo as pessoas obscuras ainda podem se sentir obrigadas a aceitar ser criticadas e a tentar realmente responder aos que o fazem".

Resta saber se a resenha de livros dessas pessoas obscuras merece algum espaço na mídia. Bouveresse fala do paradoxo da resenha impossível, ou seja, "não se pode falar de um livro X, já que X não é suficientemente conhecido para merecer que o tornemos conhecido".

Em 1969, a escritora e crítica italiana Natalia Ginzburg, que, na época, colaborava no diário La Stampa, publicou um texto chamado "A crítica". Nele, Ginzburg afirma: "Hoje em dia qualquer um que escreva, e o que quer que escreva — romance, ensaio, poesia ou teatro —, lamenta a ausência ou raridade de uma crítica, isto é, a ausência ou a raridade de um julgamento claro, inabalável, inexorável e puro" (tradução de Júlia Scamparini).

Paradoxalmente, diz a escritora, "dos críticos, costumamos esperar benevolência". "Nós a esperamos como algo que nos é devido. Se não a recebemos, nos sentimos mal compreendidos, perseguidos e vítimas de um ódio injusto; e prontamente enxergamos nos outros algum propósito desprezível."

O escritor irlandês George Bernard Shaw - Reprodução

Para Ginzburg, os críticos não deveriam se importar com o ódio alheio. No entanto, como ela ressalta, acabaram se tornando "frágeis, nervosos e sensíveis aos rancores alheios; temem perder amigos ou ofender conhecidos [...]. Hoje os críticos têm medo do ódio: têm medo de se verem sozinhos dizendo a verdade em meio a uma sociedade hostil".

Isso não parece ter mudado muito ao longo dos anos. O crítico segue nessa posição incômoda. Hoje, talvez ainda mais, pois escritores, ensaístas, tradutores etc. ganharam fã-clubes espalhados por toda parte, e isso significa que qualquer parecer rigoroso poderá ofender milhares, que gritarão em uníssono contra o resenhista. Não se espera que o público aceite passivamente a sua opinião, mas o crítico deveria, ao menos, ter a liberdade de expô-la.

Para preservar a própria espécie, o crítico poderá dar a palavra ao autor, o qual discorrerá sobre as suas intenções; não precisará, desse modo, pronunciar um veredito nem analisar nada. Mas a pergunta que fica é: dar voz ao autor "genial" de um livro medíocre que se está apresentando, sem contrapor suas falas, sem dialogar de fato com ele, não seria o mesmo que referendar a obra?

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