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José Eli da Veiga

Livro de Haddad falha ao negar choque de humanidade com natureza

Visão idealista do ministro da Fazenda faz indevida extrapolação de evidências sobre modos de vida de nossos ancestrais

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José Eli da Veiga

Professor sênior do Instituto de Estudos Avançados da USP. Mantém o site zeeli.pro.br

[RESUMO] "O Terceiro Excluído", mais recente livro de Fernando Haddad, ministro da Fazenda, tem o mérito admirável de encorajar reflexão sobre as bases teóricas da antropologia, mas falha ao defender conjectura idealista, sem comprovação real, de que nossos ancestrais seriam "altamente ecológicos" e de que não haveria qualquer separação entre seres humanos e natureza antes da revolução neolítica.

Caetano Veloso vibrou ao escutar que os seres humanos teriam sido altamente ecológicos durante quase toda a pré-história. Foi o que lhe garantiu Fernando Haddad, seu entrevistado em coluna do canal Mídia Ninja, em 14 de julho do ano passado. Assim teria sido ao longo dos 2,5 milhões de anos da Idade da Pedra lascada. Esse é um dos muitos lampejos do arrojado livro de Haddad, lançado pela Zahar: "O Terceiro Excluído: Contribuição para uma Antropologia Dialética".

Mesmo que o leitor deste artigo seja um dos que já geraram mais de 151 mil visualizações no vídeo da entrevista no YouTube, é aconselhável que possa dar mais um pouquinho de atenção aos cinco minutos que vão dos 4:23 aos 9:05, quando Haddad evoca a suposta afinidade ou harmonia prevalente no Paleolítico.

Segundo ele, não teria havido sequer separação entre nossos ancestrais e o restante da natureza, o que eliminaria a hipótese de contradição, amplamente admitida no âmbito das ciências e das humanidades.

Sessão de autógrafos com Fernando Haddad, durante lançamento do livro "O Terceiro Excluído", em São Paulo
Sessão de autógrafos com Fernando Haddad, durante lançamento do livro 'O Terceiro Excluído', em São Paulo - Ronny Santos - 14.jun.2022/Folhapress

Como ainda é ínfimo o conhecimento, validado pela arqueologia, sobre quase tudo o que pode ter ocorrido antes da chamada revolução neolítica —que, há uns 12 milênios, no início do Holoceno, abriu caminho para a Idade da Pedra Polida—, é por demais arbitrário proclamar que, até ali, "cultura e natureza não estavam em oposição como polos de uma relação" (p. 122).

Primeiro, porque, por muitos milênios, a prosperidade de agrupamentos de caçadores-coletores tendia a aumentar demais sua densidade demográfica, forçando subdivisões e migrações em direções divergentes. Por serem onívoros, ecléticos e bem adaptáveis, os humanos engendraram crescente predação de inúmeras espécies vegetais e animais.

Segundo, por ter demorado muito para que o fogo viesse a ser controlado e domesticado. Não se tem ideia do tamanho dos estragos que tais barbeiragens possam ter causado. É muito forte a suposição de que os grupos que foram adquirindo a capacidade de regular o emprego de brasas e labaredas tenham passado a dominar parte dos que não haviam adquirido tal competência.

Terceiro, porque, nos últimos 20 mil anos do Paleolítico, quando a população humana cresceu cerca de 12 vezes, houve imensas matanças de megafauna que mudaram as paisagens e aceleraram a frequência de incêndios. Ínfimos impactos, se comparados aos que viriam depois, mas suficientes para que se exclua qualquer hipótese de suave equilíbrio ecológico.

É, portanto, implausível a conjectura de que, durante o Paleolítico, não tenha havido contradição com a natureza. Em vez disso, o que é possível afirmar é que, por muito tempo, os estragos podem ter sido irrisórios, pois os humanos custaram a adquirir os meios necessários à devastação ecossistêmica.

A idealista conjectura de Haddad talvez decorra de indevida extrapolação de evidências sobre modos de vida de alguns recém-estudados povos autóctones, frequentemente muito integrados e reverentes ao restante da natureza. Porém, nada permite supor que constituam razoáveis testemunhos da humanidade pré-histórica.

É similar o que dá para dizer sobre o início do escravagismo, também vinculado, no livro (p. 102), à revolução neolítica. Mesmo que isso até pudesse parecer provável para o Oriente Médio —o que já é extremamente duvidoso—, como supor que assim teria sido em outras revoluções neolíticas, como as da China, dos Andes, do México, da Nova Guiné e da África? Quase nada se sabe sobre elas.

Talvez, até seja plausível que, antes das primeiras sociedades agrícolas estratificadas, práticas escravistas possam ter sido esporádicas e pouco representativas. Contudo, por mais radical que tenha sido a mudança, nada permite descartar algum grau de prosseguimento.

Haddad parece não ter percebido que, ao se mostrar tão convicto de que a emergência da cultura teria sido muito mais tardia do que se supõe, também acabou por jogar água no moinho do pensamento que deseja combater ao buscar contribuir para uma antropologia dialética, o subtítulo de seu livro.

Afinal, o pensamento antropológico clássico sempre tomou a relação entre natureza e cultura como sequência de dois universos separados por algum operador de ruptura. A diferença é que, para alguns, a fronteira não estaria na posse da linguagem simbólica, como sustenta Haddad, mas na invenção do fogo, na proibição do incesto, no registro externo da memória em suportes permanentes, na existência de rituais funerários ou na fabricação de ferramentas.

Em todas essas variantes, a cultura decorre de alguma mudança qualitativa, que possui o caráter irruptivo de um evento singular, introdutor da novidade. A única antropologia livre de tal orientação foi a proposta por Darwin, em sua segunda grande obra, "A Descendência do Homem", publicada em 1871. Infelizmente, desdenhada por darwinistas de todos os tempos e quadrantes, assim como pelos antropólogos, inclusive os pós-estruturalistas. Aliás, é uma leitura que talvez contribua muito para a almejada "virada ontológica" do atual "perspectivismo ameríndio".

Para Darwin, a passagem não é simples, mas reversa. O movimento natureza-cultura não produz ruptura. A cultura é o avesso da natureza e vice-versa. O que antecedeu a cultura subsiste em todos os pontos de seu desenvolvimento, dada a impossível ruptura com a natureza. A interferência permanente —ou relação de habitação mútua— entre natureza e cultura é, na antropologia darwiniana, idêntica à mais límpida das relações dialéticas: a da continuidade na descontinuidade.

Também não poderia ser mais dialético o cerne da teoria exposta em sua conhecidíssima primeira grande obra, "A Origem das Espécies", de 1859. Na dinâmica chamada de seleção natural, os responsáveis pela reprodução, ditos replicadores, resultam da superação da contradição entre espontâneas variações aleatórias e persistentes pressões das circunstâncias ambientais. Uma dinâmica simultaneamente demográfica e biogeográfica.

É triste que Marx não tenha percebido o alcance das duas revoluções científicas darwinianas. Chegou a elogiar o primeiro grande livro, mas condenou, com toda razão, as duas subsequentes extrapolações ideológicas da ideia de seleção natural, inventadas já desde os anos 1860: a liberal, de Herbert Spencer (1820-1903) e a intervencionista, de Francis Galton (1822-1911). Daí nem ter lido a segunda grande obra, perdendo a oportunidade de encontrar fundamento ecológico ao seu poderoso materialismo.

Não obstante, por atribuir altíssima relevância às ciências naturais, Marx foi levado a adotar um conceito, da ainda nascente bioquímica, para fazer incessantes analogias sobre as relações da sociedade com a natureza: o metabolismo. Isto é, o conjunto de reações químicas, no interior das células, que garantem a vida.

Fenômeno que envolve duas dinâmicas: a biossintética (anabolismo) e a degradativa (catabolismo), ambas irreversíveis, distintas, mas interligadas, cuja resultante é a vida. Contudo, para Haddad, nada teria de dialética a interação metabólica entre o organismo e seu meio ambiente (p. 44).

Na contracorrente, os atuais ecomarxistas se empenham em recuperar e enaltecer o recurso à analogia metabólica como dos mais dialéticos. É muita pena que exagerem, ao afirmar que Marx teria antevisto a crise ecológica do Antropoceno, só pelo fato de ter se referido —uma única vez e de raspão— à possibilidade de enfraquecimento de tal processo metabólico. É indevida, portanto, a asserção de que uma ecologia já estaria presente na própria obra de Marx.

O fato é que nem começou a desejável aproximação entre as teorias de Marx e de Darwin, o que poderá vir a consolidar uma antropologia dialética propriamente dita. Justamente por isso, mesmo que o livro "O Terceiro Excluído" ignore a segunda e acuse a primeira de não ser dialética, ele tem o admirável mérito de encorajar reflexão coletiva sobre a barafunda criada por mal-entendidos de intérpretes das obras de Marx e de Darwin, nos últimos 150 anos.

Não é por outro motivo, então, que Caetano Veloso e seus seguidores —alertados pelas bem-vindas provocações de Haddad— ficam convidados a tomar tudo o que foi dito acima tão somente como aperitivo ao que está exposto e justificado em um dos ensaios que compõem dossiê especial sobre o livro, organizado pela revista eletrônica Rosa.

O Terceiro Excluído: Contribuição para uma Antropologia Dialética

  • Preço R$ 64,90 (288 págs.); R$ 34,39 (ebook)
  • Autor Fernando Haddad
  • Editora Zahar
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