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Andre Pagliarini

Livro narra metamorfose do Partido Republicano em seita trumpista

Radicalização dos EUA tem paralelos gritantes com o Brasil, assolado por golpismo que Bolsonaro sempre encarnou

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Donald Trump anuncia em Mar-a-Lago, na Flórida, que disputará a indicação republicana para concorrer à Presidência em 2024 Alon Skuy - 15.nov.22/AFP

Andre Pagliarini

Professor de história no Hampden-Sydney College, na Virgínia (EUA)

[RESUMO] Trumpistas nos EUA e bolsonaristas no Brasil embarcaram, depois das derrotas eleitorais de seus líderes, em uma jornada de destruição da democracia para, supostamente, salvá-la. Novo livro do jornalista Robert Draper descreve a captura do Partido Republicano por radicais conspiracionistas, que lembram os apoiadores golpistas de Bolsonaro.

Quando Donald Trump perdeu a reeleição, em novembro de 2020, se imaginava que o Partido Republicano pudesse aceitar o resultado das urnas, tratando a derrota como uma lição importante e uma oportunidade para fazer a devida autocrítica para tentar vencer o pleito seguinte.

Esse rito democrático, afinal, havia sido cumprido até então. Surpreendida por Trump na disputa de 2016, Hillary Clinton parabenizou o vencedor e se colocou à disposição para "trabalhar com ele em nome de nosso país".

Donald Trump e Hillary Clinton durante debate presidencial na Universidade Washington, em St. Louis, Missouri - Robyn Beck - 9.out.16/AFP

Em 2012, depois da derrota para Barack Obama, presidente à época, Mitt Romney também saudou seu adversário. O republicano afirmou que os apoiadores e a campanha de Obama mereciam parabéns e desejou felicidades a ele, à primeira-dama e às suas filhas.

Tanto Hillary quanto Romney disseram torcer para que os rivais fizessem governos exitosos. Ao perder uma eleição, o bom estadista reconhece a derrota, se recolhe e não questiona a democracia, mesmo quando seus interesses pessoais são colocados em xeque.

Como sabemos, nada disso aconteceu em 2020. "O que ocorreu, em vez disso", escreve o jornalista Robert Draper em seu livro recém-lançado, "é que o Partido Republicano mergulhou mais profundamente em uma seita trumpiana de dissimulação compulsiva e conspiracionismo".

Em "Weapons of Mass Delusion: When the Republican Party Lost Its Mind" (armas de desilusão em massa: quando o Partido Republicano enlouqueceu), Draper analisa os dois anos seguintes à derrota de Trump. Foi nesse período, o autor sustenta, que a sensação de "isso não é normal", que definiu essa administração, se transformou na certeza alarmante de que "isso é perigoso".

Draper, autor de livros afiadíssimos sobre o governo de George W. Bush, a Guerra do Iraque, o papa Francisco e o Legislativo dos Estados Unidos, descreve com detalhes assombrosos a captura de um partido por uma corrente disposta a arruinar a democracia para supostamente salvá-la.

Figuras como Paul Gosar, deputado federal pelo Arizona, e sua discípula Marjorie Taylor Greene, da Geórgia, são atores centrais na narrativa de Draper.

Marjorie Taylor Greene (esq.) tira selfie com Kevin McCarthy, eleito presidente da Câmara dos Representantes dos EUA - Anna Moneymaker - 6.jan.23/Getty Images via AFP

Gosar, um dentista eleito pela primeira vez em 2010, é apresentado logo no início como um trumpista "avant la lettre". Antes da eleição de Trump, Gosar era pouco conhecido. No Congresso, não tinha uma boa reputação, e muitos o descreviam como uma pessoa esquisita, malresolvida e grossa.

O deputado, no entanto, era entusiasta de teorias da conspiração que dariam corpo ao movimento político capitaneado por Trump depois de 2016. Em 2020, Gosar liderou o primeiro protesto contra o resultado das urnas. Seu estado foi um dos poucos colégios eleitorais que deram votos a Trump em 2016 e a Biden na eleição seguinte, e o trumpista se negou a acreditar que seu mestre havia perdido no Arizona. Afinal, ele disse à época, todo o mundo que ele conhecia tinha votado no republicano. O resultado só poderia ter sido roubado.

Greene, por sua vez, é mais caricata e mais adepta das redes sociais, que ela usa para introduzir ideias alucinantes —por exemplo, que incêndios na Califórnia teriam sido causados por lasers espaciais controlados por judeus— em correntes de direita mais próximas do mainstream.

Outro tipo de republicano, na visão de Draper, deve sofrer ainda mais no julgamento da história: os oportunistas de plantão. "Como pessoa que põe a mesa para Donald Trump, nenhum republicano fez tanto para o empoderar quanto Kevin McCarthy", escreve.

McCarthy, deputado da Califórnia que nunca tinha sido um extremista ideológico, almejava a presidência da Câmara dos Representantes e considerava o apoio de Trump imprescindível. Para ele, obter esse apoio significava minimizar o perigo representado por grupos extremistas que se organizavam longe de Washington para conquistar o poder violentamente em nome do presidente derrotado.

Neste mês mês, McCarthy finalmente chegou ao tão sonhado comando da Câmara, mas só depois de enfrentar um drama político que não era visto havia mais de 150 anos nos EUA. Para vencer a eleição, que se prolongou por quatro dias e 15 votações, o deputado teve que ceder muito à ala mais extremista de seu partido, o que deixa dúvidas sobre quem realmente triunfou —McCarthy ou os trumpistas ferrenhos que tentaram bloquear sua ascensão.

Durante a campanha presidencial de 2020, Joe Biden dizia que a disputa contra Trump representava uma "batalha pela alma da nação". Para Draper, porém, a batalha mais importante aconteceu depois da eleição, quando os republicanos se recusaram a aceitar o resultado.

A trajetória de Liz Cheney, uma das poucas personagens heroicas do livro, expressa com nitidez a atmosfera de conflagração no partido. Extremamente conservadora, a filha do vice-presidente de George W. Bush foi uma republicana ilustre até se tornar alvo de Trump.

Draper estava dentro do Capitólio em 6 de janeiro de 2020, dia em que uma multidão de trumpistas armados e inconformados com o resultado das eleições invadiu o prédio para tentar impedir a ratificação da vitória de Joe Biden, e relata com detalhes inéditos a conduta de Cheney. A deputada de Wyoming, escreve, resistiu publicamente à pressão de seus colegas de partido para amenizar os acontecimentos criminosos daquele dia e deixar uma porta aberta para um futuro questionamento do pleito.

O resultado? Cheney foi esmagada pela candidata endossada pelo ex-presidente nas primárias republicanas do seu estado em 2022 e ficou sem mandato. Trump é pré-candidato à Presidência e prepara sua campanha de 2024.

Os paralelos dessa situação com o Brasil são gritantes. No último 12 de dezembro, data em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi diplomado pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral), golpistas apoiadores de Bolsonaro aterrorizaram Brasília, ateando fogo em veículos e tentando empurrar ônibus de um viaduto.

"O bolsonarismo saiu de um movimento popular de extrema direita para uma célula terrorista", escreveu o analista político Thomas Traumann no Twitter enquanto a capital da quarta maior democracia do mundo era atacada por um pequeno bando profundamente violento. A mesma observação caberia no livro de Draper, que constata o que o trumpismo foi capaz de fazer depois de perder as eleições.

O atentado de 8 de janeiro, maior investida contra as instituições democráticas brasileiras desde a ditadura militar, eleva o patamar da ameaça golpista, inflamada por Jair Bolsonaro, e levanta uma pergunta que será fundamental durante todo o governo Lula e para o país nos próximos anos: a data marca o início do fim do bolsonarismo?

Em outras palavras, o Estado brasileiro vai ser capaz, a partir dos acontecimentos na praça dos Três Poderes, de derrotar de uma vez por todas o projeto golpista que Bolsonaro sempre encarnou ou o 8 de Janeiro vai marcar o fim da ficção de que o bolsonarismo é um movimento democrático, levando a um período de confronto ainda mais acirrado?

"Weapons of Mass Delusion" aponta que a seita trumpista só fez avançar na radicalização nos dois anos seguintes à derrota de seu líder, produzindo um adoecimento ainda maior da democracia americana.

No Brasil, resta ver o saldo dos eventos de 8 de janeiro. Lula pareceu revigorado pelo ataque golpista que Brasília sofreu nos primeiros dias de seu terceiro mandato. O presidente é um líder forjado em um contexto de adversidade e crise política; sua capacidade de expressar indignação sempre lhe serviu bem e cabe perfeitamente nesse momento tão grave da história brasileira.

A vitória de Lula abriu espaço para que forças progressistas iniciem um novo ciclo de engajamento em torno de pautas sociais e econômicas imprescindíveis para a maioria da população, bem como de temas como o combate à violência estatal e ao autoritarismo no Brasil. Esse espaço não garante sucesso no futuro, mas é incomparavelmente melhor que precisar, todos os dias, fazer um esforço enorme para barrar retrocessos civilizatórios.

Existem muitos motivos para preocupação nos dois países, e Draper apresenta uma hoste delas. "Para Trump" em 2022, Draper escreve, "todos os caminhos levavam para trás, para ele e sua Presidência".

Apesar de tudo, o ex-presidente continua insistindo na sua relevância para tentar chegar competitivo à próxima campanha presidencial. O bolsonarismo, um movimento autoritário que nem finge mais ter um cerne democrático, também permanece assolando o país. Resta ver exatamente como os eventos de 8 de janeiro vão afetar o destino político do ex-presidente, chamado por Ernesto Geisel de mau militar.

Cabe ressaltar, por outro lado, que os republicanos tiveram seu pior desempenho em décadas na última eleição de meio de mandato, e, para 44% dos eleitores, a preservação da democracia nos Estados Unidos foi o tema mais importante na última eleição para deputados, senadores e governadores.

Logo após o ataque bolsonarista em Brasília, uma pesquisa Datafolha mostrou que só 3% dos brasileiros são favoráveis aos atos antidemocráticos, enquanto 93% reprovaram a depredação extremista. Isso inspira confiança.

Nas democracias de todo o mundo acometidas pelo populismo reacionário de Trump, Bolsonaro e afins, é necessário insistir no argumento de que não faz sentido se colocar como nacionalista ou patriota e não respeitar a democracia. A democracia, afinal, é o modo de governo que se baseia em escolhas do povo. É o povo que faz uma nação, para o mal, mas também para o bem.

Weapons of Mass Delusion: When the Republican Party Lost Its Mind

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