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Guilherme Wisnik e Raquel Rolnik

Instalar grades em palácios modernistas de Brasília seria um erro

Reforçar a segurança de sedes dos Poderes com muros e portas de ferro levaria a mais segregação e violência

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Guilherme Wisnik

Arquiteto-urbanista, é vice-diretor da FAU-USP

Raquel Rolnik

Professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP) e coordenadora do LabCidade

[RESUMO] Brasília, a "Versalhes do povo" imaginada por Lúcio Costa, com seus palácios de vidro e rampas que unificam os espaços, se tornou um símbolo do pacto de não enfrentamento das estruturas oligárquicas e violentas do Brasil. A invasão das sedes dos Três Poderes por golpistas em 8 de janeiro marca a ruptura violenta desse pacto, o que demanda o aumento da porosidade dos edifícios da Esplanada dos Ministérios, não a construção de grades e muros.

Em abril de 2016, durante a votação do impeachment de Dilma Rousseff (PT) na Câmara dos Deputados, a Esplanada dos Ministérios de Brasília foi dividida em duas partes por um muro improvisado, que separava os dois grupos adversários.

Além de símbolo explícito de uma rachadura no país, aquele muro representava também a erosão do projeto modernista que embasou a construção da cidade: a grande esplanada como espaço aberto e democrático, alimentado pelo convívio das diferenças, ladeado por edifícios simétricos e tendo como ponto focal as duas torres do Congresso Nacional, com suas cúpulas invertidas.

Militar embaixo da rampa do Palácio do Planalto - Gabriela Biló - 17.jan.23/Folhapress

Sabemos o quanto de violência histórica esteve envolvida na construção de Brasília, cujo Plano Piloto se mantém intacto graças à existência de precárias cidades-satélite e municípios em seu entorno, onde vive a maior parte da população. Sabemos também que a utopia modernista personificada na nova capital simbolizava, sobretudo para uma elite ilustrada que propunha um pacto civilizatório por meio do desenho da nova capital, que renegava a antiga monumentalidade ostensiva e hierárquica em nome de um monumento despojado, que se oferece a todos e que almeja um horizonte igualitário.

Daí os seus palácios de vidro transparente, acessados por delicadas rampas, não por imponentes escadarias, e sem portas evidentes nem muros ou grades. Símbolos do poder que se oferece ao povo, dando forma à ideia de que são edifícios verdadeiramente públicos, emblemas de um país democrático. Lúcio Costa, aliás, gostava de dizer que Brasília era a Versalhes do povo, não do rei.

A recente invasão e vandalização dos palácios que conformam a praça dos Três Poderes —e a República democrática brasileira— expôs o preocupante avanço daquela rachadura no país, que já se mostrava nítida em 2016.

Agora se acrescenta, porém, um gesto de repúdio a qualquer forma de mediação das diferenças, na forma de uma explosão violenta. Cultivando um grande ressentimento em relação aos símbolos daquele projeto civilizatório e vanguardista, a extrema direita bolsonarista (e olavista) vê nisso tudo os emblemas de uma casta intelectualizada e elitista que sempre os alijou.

Portanto, o desrespeito à democracia nesse caso —especialmente quando o resultado das urnas não coincide com a sua vontade— se soma ao ódio explícito por esses símbolos, que eles gostariam de ver incendiados.

É curioso que, diante desse fato histórico tão sombrio, algumas vozes, em suposto exercício de análise crítica, tenham identificado o problema não na truculência dos extremistas invasores nem na política genocida do governo que eles apoiam, mas na falta de segurança dos palácios, propondo a substituição dos vidros por paredes de alvenaria, a instalação de pesadas portas de ferro e, claro, a construção de muros e cercas elétricas. Postura que, reafirmando a exclusão e o medo, gera segregação e mais violência e que, não por acaso, coincide com o incentivo à compra e ao uso de armas de fogo e com a defesa da legitimidade de se fazer justiça com as próprias mãos.

Por que tamanha explosão de ódio e de violência contra esses símbolos agora? Afinal, a ditadura civil-militar que governou o Brasil por 21 anos se instalou confortavelmente em Brasília. Sabemos, inclusive, que seus eixos largos e muito facilmente controláveis por forças policiais facilitaram muito o encastelamento do poder naquele período autoritário. Para os chefes da caserna, palácios de vidro de Niemeyer, telas de Di Cavalcanti e tapeçarias abstratas de Burle Marx nunca foram problema. Qual é, então, a diferença agora?

Temerosa após duas décadas de ditadura, a Nova República manteve o pacto de não enfrentamento das estruturas violentas e oligárquicas do Brasil. A ampla anistia dada aos torturadores, por exemplo, é símbolo claro disso e difere radicalmente do que ocorreu em países vizinhos, como a Argentina e o Chile. A onipresença do racismo e da escravidão, o colonialismo que repõe e atualiza a usurpação de terras, o clientelismo estruturador das relações politicas —Brasília é o próprio símbolo desse pacto, em um momento em que sopraram ares razoavelmente libertários.

Mas, se a esquerda e a centro-esquerda democráticas brasileiras sempre se empenharam em manter o pacto acomodatício que embasa a história política do país, quem sentiu a necessidade de rompê-lo violentamente, hoje, foi a direita. O ataque aos palácios-sede dos três Poderes em Brasília é a expressão em fúria dessa ruptura. Não é possível falar dessa sanha destruidora, porém, sem mencionar as cenas que a precederam.

Em 1º de janeiro de 2023, quem esteve historicamente alijado desse pacto, a não ser como recipiente das "entregas" do governo, subiu a rampa do Palácio do Planalto para entregar a faixa presidencial a Lula. Ali, a generosidade daquela arquitetura intrigante e despojada amparava um sentimento evidente nas pessoas de se mostrar à vontade na sede do poder, a "casa" de todos. A mensagem foi clara: ali se delineava uma (ainda) possibilidade nova.

Em 8 de janeiro, no entanto, uma turba enfurecida subia a mesma rampa para renegar todos aqueles valores afirmados uma semana antes e destruí-los ostensivamente.

Por fim, no dia seguinte, em claro gesto de reação aos ataques, o presidente Lula, acompanhado dos governadores e de vários ministros da República, atravessou a mesma rampa em direção ao Supremo Tribunal Federal, recosturando simbolicamente os pactos e elos da democracia atacada.

A rampa, em arquitetura, é um elemento usado para unificar os espaços, evitando sua fragmentação. Através dela, dizia Le Corbusier, construímos passeios arquitetônicos ("promenade architecturale") em espaços que, por isso, são entendidos como contínuos, coerentes e integrados. Nesse sentido, ela se opõe ao muro.

Ocorre que os bolsonaristas já não se contentam com muros que separam lados, como em 2016. Eles querem a destruição das rampas e das obras de arte e o incêndio dos palácios. Querem a perpetuação de um modelo no qual apenas um lado prevaleça, sem qualquer concessão a uma simbologia democrática.

E nós? O que faremos com nossos delicados palácios de vidro daqui para a frente? Conseguiremos continuar a cruzar livremente essas rampas, conectando em diálogo os três Poderes?

Seja qual for a resposta, teremos que reposicionar o simbolismo de Brasília sabendo que o pacto histórico que ela representa foi rompido. Nesse sentido, os próximos passos terão que ser dados para a frente, não para trás. Assim, os palácios modernistas terão que, de fato, poder incorporar as múltiplas formas de saberes e de viveres que constituem a sociedade brasileira, aumentando ainda mais a sua porosidade —se quiserem sobreviver.

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