Machado de Assis 'intuiu fratura da sociedade brasileira', diz professor

João Cezar de Castro Rocha e Sérgio Rodrigues participaram da mais recente edição do ciclo Perguntas sobre o Brasil, cujo tema foi o autor carioca do século 19

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Belo Horizonte

Em suas obras, Machado de Assis (1839-1908) conseguiu intuir a "verdadeira fratura da sociedade brasileira", afirmou o professor João Cezar de Castro Rocha, que leciona literatura comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

O autor carioca soube criar "narradores diversos, cuja finalidade é ocultar e naturalizar a enorme violência que ocorre diariamente entre a moldura da sociedade feliz chamada Brasil", disse o acadêmico nesta quarta-feira (22) durante a 13ª edição do ciclo Perguntas sobre o Brasil, voltada para discutir como o século 19 do escritor conversa com a contemporaneidade.

a imagem colorizada mostra Machado de Assis, homem negro de pele retinta, que usa barba e cabelos grisalhos
Foto da campanha Machado de Assis Real, com imagem colorizada que representa o autor como negro - Divulgação

"Quando a gente pensa por que o Machado tem essa capacidade de permanência, eu gosto de uma imagem da indústria farmacêutica. Eu acho que ele é uma droga de liberação lenta", diz o escritor, crítico literário e colunista da Folha Sérgio Rodrigues, que participou do debate.

"Machado continua sendo redescoberto na quantidade de surpresas que ele guarda a cada nova leitura. É uma coisa sobrenatural, quase mágica", complementa Rodrigues.

A conversa, realizada online, foi mediada pela pesquisadora Juliana Santos, do Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo. O ciclo de diálogos Perguntas sobre o Brasil é promovido pelo CPF em parceria com a Associação Portugal Brasil 200 Anos (APBRA) e com a Folha.

Autor de livros como "Guerra Cultural e Retórica do Ódio: Crônicas de um Brasil Pós-político (ed. Caminhos, 2020) e "Machado de Assis: Por uma Poética da Emulação" (Civilização Brasileira, 2013), Castro Rocha se valeu de um conto de Machado lançado em 1871 para explicitar seu ponto de vista.

O conto "Mariana" foi lançado no período da decretação da lei do ventre livre, quando o escritor era um funcionário exemplar da monarquia. "A partir de setembro daquele ano, todas as crianças nascidas de ventres de escravos não mais escravizadas seriam", lembra o professor.

a foto mostra um homem branco de meia idade, com cabelos e barbas grisalhos, que usa óculos de grau. ele é fotografado diante uma estante de livros e gesticula com a mão
O professor João Cezar de Castro Rocha, autor de “Machado de Assis: Por uma Poética da Emulação” (Civilização Brasileira, 2013) - Reprodução/Editora UFPE no Youtube

"Esse conto me parece que é a grande intuição do Machado que permanece atual em relação ao Brasil", diz Castro Rocha. A tragédia narra a história de Mariana, uma "gentil mulatinha" escravizada, segundo o texto, que "possuía a inteligência da sua situação e não abusava dos cuidados com que era tratada". Machado ironiza: "No mais, é como se fosse pessoa livre".

Mariana vive um romance com Coutinho, filho da senhora da casa onde ela era escravizada, e perde "a inteligência de sua situação", de acordo com o professor. "Ela faz precisamente aquilo que uma escravizada não pode, ter subjetividade. E, claro, a partir desse momento, tudo se revela."

A história de Mariana é contada por meio de dois narradores burgueses, Coutinho e seu amigo Macedo, que se encontram no Rio de Janeiro após um período da Europa. Depois do relato descontraído que culmina na morte de Mariana, um deles agradece pelo papo e fala, despretensiosamente, que a conversa havia recuperado a mocidade de ambos.

Castro Rocha formula uma hipótese, que justapõe a narrativa de Machado e o início da pandemia de Covid-19 no Brasil. "Muitos empresários resolveram se manifestar naquela época e diziam —um em particular, Roberto Justus— que a economia não podia parar. Morrerão milhares de pessoas, o que é uma lástima, mas o que fazer?", recorda-se.

"No fundo, não é verdade que essa pessoa está partindo do princípio de que, entre essas milhares de pessoas, ele não se encontra? Em alguma medida, a sociedade brasileira hoje ainda é uma sociedade de Macedos e Coutinhos", diz.

"Creio que Machado flagra nesse conto a verdadeira tragédia, a desumanização do outro e o desprezo radical de tudo que é diverso."

Esse corte no conto "Mariana" mostra, segundo Sérgio Rodrigues, autor de "A Vida Futura" (Companhia das Letras, 2022), a capacidade de Machado de "codificar a visão histórica nos detalhes formais mais delicados e sutis".

sérgio rodrigues aparece recostado sobre uma mesa, dentro de uma casa. ele é um homem branco que usa óculos de grau, careca e de barbas curtas e grisalhas. usa uma camiseta preta e uma calça branca
Sérgio Rodrigues, escritor e colunista da Folha, fotografado no Rio de Janeiro - Ricardo Borges - 13.jun.19/Folhapress

Rodrigues ressalta a contradição na figura do escritor clássico, um homem de origem negra, assimilado como branco numa sociedade racista, que conseguiu cultivar laços sociais na mais alta sociedade carioca.

"Houve um tempo em que Machado foi visto como um adesista, um traidor da sua raça", ele disse. "Ao mesmo tempo em que ele era o sujeito fazendo o diagnóstico mais cortante e violento de uma sociedade profundamente injusta, quase como se fosse uma espécie de agente duplo."

A conversa de Castro Rocha e Rodrigues foi transmitida pelos canais do Sesc São Paulo, do Diário de Coimbra e da Associação Portugal Brasil 200 anos (APBRA) no Youtube, e continua disponível na íntegra nos canais. Assista abaixo.

O ciclo de diálogos Perguntas sobre o Brasil se inspira na lista de 200 livros para entender o Brasil, lançada em maio do ano passado para discutir aspectos relevantes do país.

O evento é realizado sempre às quartas-feiras, a cada duas semanas. Os temas das próximas conversas envolvem o desenvolvimento econômico do Brasil, a contribuição do tropicalismo e o futuro da Amazônia. Veja a programação completa.

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