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Eduardo Matarazzo Suplicy

Meu sonho de renda básica universal está cada vez mais real

Eduardo Suplicy comenta trajetória da proposta e perspectivas de efetivação

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Eduardo Suplicy

Deputado estadual (PT-SP), foi senador por 24 anos. É autor do projeto de lei que instituiu a Renda Básica de Cidadania no Brasil, em 2004

[RESUMO] Hoje deputado estadual, Eduardo Suplicy (PT-SP) detalha o percurso da ideia de renda básica universal no Brasil nas últimas três décadas: os primeiros debates de que participou nos anos 1990, os programas precursores no governo FHC, a criação do Bolsa Família na gestão petista, a sanção por Lula da lei que cria a Renda Básica de Cidadania, em 2004. Após audiência no Senado no final de abril, Suplicy vê chances mais concretas de implementação do programa.

Quem me conhece sabe o quanto tenho me empenhado para ver em vida a implantação do projeto que prevê a Renda Básica de Cidadania, universal e incondicional, para todas e todos. Acredito que meu sonho está cada vez mais próximo a se tornar realidade —e foi ele que me levou novamente a Brasília no último dia 25 de abril.

Fiquei feliz em voltar ao Senado após 24 anos de mandato, de 1991 até 2015. Convidado pelo senador Fabiano Contarato (PT-ES), presidente da comissão mista da medida provisória Nº 1.164, participei da audiência pública para debater como pode se dar a transição do Bolsa Família para a universalização da Renda Básica de Cidadania (RBC).

Grafite em parede de Pousada na favela do Cantagalo, na zona sul do Rio - Daniel Marenco-29.set.14/Folhapress

Isso porque a própria MP explicita que o Bolsa Família constitui etapa do processo gradual e progressivo de implementação da RBC (parágrafo único do art. 6º da Constituição, e no § 1º do art. 1º da Lei 10.835/2004). Fui convidado por ser o autor desta lei, aprovada por todos os partidos no Congresso Nacional e sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva há 19 anos.

As sugestões para aperfeiçoar a MP nasceram de diálogos com o vice-presidente, Geraldo Alckmin, o ministro do Desenvolvimento, Assistência Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias, o senador Fabiano Contarato, o deputado Dr. Francisco (PT-PI), a professora Aldaiza Sposati, o presidente da Rede Brasileira da Renda Básica, Leandro Ferreira, além de representantes de entidades de assistência social.

Sugerimos, por exemplo, a criação de um grupo de trabalho que envolva o Congresso Nacional, o Poder Executivo e a participação de estudiosos para analisar os passos do Bolsa Família em direção à Renda Básica. Mas, como chegamos até aqui?

Da Renda Mínima aos projetos de transferência de renda

Na audiência púbica recentemente em Brasília, expus como apresentei, em 1991, um primeiro projeto de garantia de renda mínima a partir de um imposto de renda negativo. Pela proposta, toda pessoa adulta que não ganhasse algo similar a US$ 150 por mês —em valores de 1991, equivalia a cerca de dois salários mínimos— teria direito a receber 50% da diferença entre aquele montante e seu nível de renda.

Com parecer favorável do senador Maurício Correa (PDT-DF) para que fosse instituído por etapas, ao longo de oito anos, começando pelos mais velhos, o projeto foi aprovado quase que por consenso dos 81 senadores.

No mesmo ano, quando apresentei o projeto para um grupo de economistas do PT, o professor José Márcio Camargo (PUC-RJ) ponderou que seria bom começar a renda mínima pelas famílias mais pobres, desde que colocassem suas crianças nas escolas. Seria uma maneira de cortar um dos círculos viciosos da pobreza.

Quando o professor Philippe van Parijs fez palestras na UFRJ e na USP, em 1994, e soube que o Senado havia aprovado a garantia de renda mínima, convidou-me para participar do 5º Congresso da Rede Mundial da Renda Básica, ou Bien (Basic Income European Network).

Ali conheci tantos outros entusiastas da ideia, como Guy Standing, Claus Offe, Karl Widerquist. Mais tarde, a Bien passou a significar, por minha sugestão, Basic Income Earth Network, com vistas a englobar um maior número de discussões em todos os continentes.

Em outubro de 1996, quando Van Parijs voltou ao Brasil, marquei uma audiência com o presidente Fernando Henrique Cardoso e o ministro da Educação, Paulo Renato Sousa.

Van Parijs explicou ao presidente que o objetivo maior seria a renda básica universal e incondicional, mas enfatizou que iniciar a garantia de uma renda mínima relacionada à educação significaria um investimento em capital humano.

Fernando Henrique deu então sinal verde para que o Congresso Nacional, com meu apoio e de todos partidos, aprovasse o que veio a ser a lei 9.533/1997, que assegurava às famílias carentes uma renda mínima desde que suas crianças estivessem na escola.

No mesmo ano, Fernando Henrique promulgou o Programa Bolsa Alimentação, pelo qual as famílias teriam direito a receber uma renda mínima desde que, entre outros fatores, os pais levassem suas crianças aos postos de saúde para que fossem vacinadas.

Como chegamos ao Bolsa Família e como ele pode evoluir?

Em 2003, no início de seu primeiro governo, o presidente Lula lançou o Programa Fome Zero. Cada família que não alcançasse determinado nível de renda passaria a ter direito de receber um cartão alimentação no valor de R$ 50. Em outubro do mesmo ano, Lula resolveu racionalizar e unificar os programas Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio Gás e Cartão Alimentação, no que veio a ser chamado de Bolsa Família.

Em dezembro de 2003, havia 3,5 milhões de famílias beneficiárias no programa. O número foi gradualmente aumentando até chegar a mais de 14,2 milhões de famílias em 2014/2015, a partir do compromisso dos beneficiados com saúde e educação.

Mais e mais interagindo com os membros da Bien, fiquei persuadido de que a renda básica universal seria uma evolução dos programas com condicionalidades e apresentei, em dezembro de 2001, um projeto de lei com essa proposição.

O relator, senador Francelino Pereira, ponderou que a renda básica precisaria estar de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal. Para cada despesa, há necessidade de detalhar a receita correspondente.

"Que tal aceitar um parágrafo que diga que será instituída gradualmente, a critério do Poder Executivo, começando pelos mais necessitados?" Assim foi feito, o PL foi aprovado no Senado e na Câmara, por todos os partidos, e sancionado pelo presidente Lula em 8 de janeiro de 2004.

Os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro tiveram muito menor atenção com os programas de transferência de renda e com os objetivos fundamentais de erradicação da pobreza e de diminuição da desigualdade. Assistimos a um retrocesso com períodos de recessão, crescimento do desemprego e da pobreza absoluta e relativa e aumento do número de pessoas em situação de rua em quase todos os municípios brasileiros.

O então senador Eduardo Suplicy (PT-SP) (à dir.) beija o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva na cerimônia de sanção da lei que instituiu o programa Renda Básica de Cidadania, em 2004, em Brasília - Bruno Stuckert-8.jan.04/Folhapress

Uma importante iniciativa da Defensoria Pública da União do Rio Grande do Sul provocou uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Em nome de uma pessoa em situação de rua em Porto Alegre —Alexandre da Silva Portuguez, 51, epiléptico—, a defensoria impetrou um mandado de injunção junto ao STF, denunciando que o governo Bolsonaro deveria cumprir a lei de Renda Básica de Cidadania.

Em 26 de abril de 2021, o STF acatou o mandado de injunção, obrigando o governo federal a cumprir a lei. Bolsonaro tentou responder, mas inadequadamente, com o programa Auxílio Brasil.

Por que a Renda Básica de Cidadania Universal e Incondicional será melhor que as transferências com condicionalidades?

O nosso projeto elimina toda e qualquer burocracia. Eliminamos qualquer sentimento de estigma ou de vergonha de a pessoa precisar dizer: "Eu só recebo tanto, e por isso preciso de tal complemento". Eliminamos o fenômeno da dependência, que acontece quando uma pessoa está por aceitar ou não certo trabalho.

A principal vantagem da RBC é do ponto de vista da dignidade e da liberdade do ser humano. Para aquela mãe que, não tendo alternativa para alimentar sua família, resolve se prostituir; ou para aquele rapaz que, por não conseguir contribuir para o orçamento familiar, resolve se tornar um aviãozinho da quadrilha de narcotraficantes.

Como o "Homem na Estrada" de Mano Brown, no dia em que houver a RBC, essas pessoas ganharão o direito de dizer: "Não, agora eu não preciso aceitar esta única alternativa que me surge pela frente". É neste sentido, pois, que o programa vai elevar o grau de liberdade e de dignidade de todas as pessoas na sociedade.

Mas todas as pessoas vão receber, até os mais ricos? Sim, mas obviamente os mais ricos colaborarão mais para que eles próprios e todos os demais venham a receber.

Vamos sonhar juntos?

Personalidades como o papa Francisco, Barack Obama, Muhammad Yunus, James Tobin, Amartya Sen têm se manifestado em favor da renda básica universal. Estima-se que 130 países estão realizando projetos e debates sobre o tema.

No livro "Vamos Sonhar Juntos" (edição 2020, página 143), o papa Francisco faz uma importante reflexão: "Acredito que seja hora de explorar conceitos como o da renda básica universal que poderia redefinir as relações no mercado laboral, garantindo às pessoas a dignidade de rejeitar condições de trabalho que as pressionam na pobreza. Daria aos indivíduos a segurança básica de que precisam, eliminando o estigma do seguro-desemprego, e facilitaria a mudança de um trabalho para outro, como cada vez mais os imperativos tecnológicos do mundo trabalhista exigem".

Como o papa Francisco, eu acredito que é possível colocar em prática os instrumentos de política econômica que possam elevar o grau de justiça na sociedade.

A renda básica universal é um instrumento poderoso para um mundo mais justo e igualitário. Tenho confiança de que o Congresso Nacional irá aprovar as emendas propostas pela Rede Brasileira da Renda Básica para que o sonho, finalmente, torne-se realidade.

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