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Jorge Chaloub e Pedro Luiz Lima

Limitar o bolsonarismo a fenômeno 'de baixo para cima' ofusca ação de elites

Ao enfatizar movimento totalitário em periferias, Gabriel Feltran constrói cenário sem saída política para o mundo popular

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Jorge Chaloub

Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora)

Pedro Luiz Lima

Professor do Departamento de Ciência Política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro)

[RESUMO] O artigo de Gabriel Feltran publicado recentemente na Ilustríssima tem o mérito de ressaltar que o bolsonarismo não se restringe ao universo das elites, que enganariam massas confusas, mas a ênfase excessiva que o antropólogo dá às bases populares da extrema direita no Brasil, argumentam autores, carrega o risco de naturalizar os discursos de seus protagonistas e enfraquecer o potencial de compreensão do fenômeno.

Mesmo nos melhores esforços interpretativos da vida política e social do país, duas constatações grandiosas costumam se alternar sobre a nossa malfadada democracia: ora se observa uma profunda degeneração capilarizada na sociedade brasileira, ora se constata um vício congênito do Estado e do nosso precário arcabouço institucional.

Quando a crítica se concentra nos problemas do Estado, é comum o uso de conceitos como patrimonialismo e populismo, desejosos de retratar um poder estatal incapaz de cumprir as promessas mais elementares.

Jair Bolsonaro discursa durante a CPAC (Conferência da Ação Política Conservadora) em Maryland, nos Estados Unidos - Evelyn Hockstein - 4.mar.23/Reuters

Ineficiência e inadequação seriam patologias atávicas em razão de problemas tão diversos quanto a promiscuidade entre interesses públicos e privados e a aversão a uma dinâmica de distribuição e equilíbrio de poderes. Parte substancial do liberalismo brasileiro, de Raymundo Faoro a Roberto Campos, tem nessa narrativa um dos seus elementos mais relevantes.

No padrão alternativo de argumentação, os problemas nacionais aparecem como expressão de males profundamente arraigados na sociedade brasileira, que seria profundamente autoritária, incapaz de se organizar em modernos padrões de classe ou de constituir as bases sociais pluralistas necessárias à fruição da democracia.

Estamos diante, nesse caso, de um longevo argumento da tradição conservadora brasileira, que tem na representação dos descaminhos de uma sociedade incapaz de se auto-organizar, entregue aos pequenos interesses e ao banditismo, a justificativa para a defesa mais ou menos explícita de ordens autoritárias. Nem sempre o diagnóstico leva a tal programa político, mas é preciso atentar para os riscos de argumentos desse tipo serem canalizados para esse caminho.

As interpretações sobre o bolsonarismo reproduzem com frequência elementos desse segundo padrão interpretativo. Ganha força a ideia de que estamos diante de uma expressão histórica profunda, que teria encontrado em Bolsonaro seu (autêntico?) porta-voz.

Com grande sensibilidade às inflexões políticas contemporâneas, a caracterização do bolsonarismo como expressão de grupos sociais historicamente marginalizados aparece no artigo de Gabriel Feltran publicado na Ilustríssima no último dia 16.

As reflexões recentes de Feltran sobre o tema têm inúmeras virtudes e contribuem para uma melhor compreensão das relações entre as mudanças nas periferias urbanas e o crescimento da ultradireita no Brasil.

Deve-se destacar que sua interpretação evita a leitura do bolsonarismo e da ultradireita como patologia ou disfuncionalidade, individual ou coletiva, ao expor que há interesses, visões de mundo e práticas sociais que encontram representação na figura do ex-presidente ou de outros líderes do mesmo campo político. Feltran, dessa forma, colabora na análise do caráter moderno e da dimensão transnacional da ultradireita, o que não implica recusar suas peculiaridades locais.

A ênfase excessiva que o autor tem dado em textos recentes às bases populares do bolsonarismo e à sua caracterização como um fenômeno fundamentalmente "de baixo para cima", todavia, merece uma discussão mais detida.

Em um artigo publicado em 2020, Feltran deixou nítido o seu argumento: "Vestígios autoritários persistentes podem, sim, organizar alguns grupos de classe média, das elites. Mas elas embarcaram recentemente no movimento militarista policial e anti-intelectualista evangélico, não o contrário. O movimento totalitário em curso não é, como por vezes se faz pensar, uma mobilização das elites contra os pobres".

Para ele, os "pretos e jagunços" que organizam territórios e influem na política a partir de áreas historicamente marginalizadas recusam o Brasil oficial e, em parte por isso, romperam a "linha de poder" que os ligava às elites tradicionais. O "movimento totalitário" seria composto por "jagunços emancipados dos coronéis", polícias, militares e milícias, pastores reacionários e massas das periferias, que concebem "a violência crua como produtora de ordem legítima".

Mesmo que destaque, em outro texto, que o totalitarismo é um movimento, não um regime, o sociólogo parece pensar a hegemonia do movimento totalitário como um horizonte possível e até mesmo provável no futuro próximo, caso esse regime normativo não seja desmantelado ou reconfigurado.

O conceito de totalitarismo, no entanto, tem aspectos problemáticos até quando aplicado a seus objetos tradicionais, como a Alemanha nazista. Mesmo Hannah Arendt resistiu a mobilizá-lo para interpretar o fascismo italiano.

As dificuldades são ainda maiores no caso brasileiro. O conceito retrata atores políticos afinados à ideia de um poder total, sem contraste e possibilidade de resistência efetiva, o que sugere um grau de adesão a ideais e práticas extremamente raro na história brasileira. Tratar as periferias a partir do conceito de movimento totalitário as representa em perspectiva excessivamente uniforme, despida de diversidade de vozes e de caminhos para a transformação política.

O bolsonarismo recorreu constantemente a elementos de uma linguagem política fascista: por exemplo, apologia da violência, crítica negacionista à ciência, sobreposição de instituições ao líder, mobilização de setores subalternos da sociedade por meio de milícias armadas. Como desenvolve a melhor bibliografia sobre o tema, o fascismo implica tanto uma renovação de elites e uma mobilização de massas quanto passa por compromissos com as classes altas e ganha espaço a partir de crise políticas construídas por setores com recursos de poder.

Alguns dados põem em perspectiva o papel das elites econômicas na gênese do bolsonarismo e em seu êxito eleitoral. Uma pesquisa Datafolha realizada em 7 e 8 de abril de 2016, às vésperas da votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, apontou Jair Bolsonaro à frente nas intenções de voto entre quem tinha renda familiar mensal superior a dez salários mínimos (cerca de 5% da população) em todos os cenários, chegando a atingir 23% das intenções de voto em um deles. O então deputado tinha desempenho sensivelmente pior entre os eleitores com menor renda e alcançava de 6% a 8% das intenções de voto entre todos os respondentes da pesquisa.

O dado, destacado à época por André Singer nesta Folha, não reduz o bolsonarismo a um fenômeno de elite, mas aponta que Bolsonaro, antes mesmo de ser visto como um candidato competitivo, já era o predileto entre os mais ricos.

Um grande número de pesquisas enfatiza a crescente veiculação de ideias e argumentos de ultradireita no debate público nas últimas duas décadas. Em livros publicado por grandes editoras e em colunas de jornal, houve um aumento de intelectuais e líderes que reivindicam ostensivamente o pertencimento à direita e assumem motes típicos da extrema direita.

A maior parte dos protagonistas desse movimento dispunha de vastos recursos econômicos e sociais, que os permitiu construir atalhos para a mobilização política. Ao tratarmos esses personagens como expressão autêntica de grupos sociais subalternos, corremos o risco de naturalizar seus próprios discursos, em que frequentemente buscam reiterar os supostos vínculos dos novos protagonistas da direita com as maiorias silenciosas da sociedade brasileira.

Há, por outro lado, uma crescente radicalização da direita e da centro-direita, que se aproximaram da linguagem política da ultradireita. Ataques ao direito ao aborto, como os proferidos por José Serra e Aécio Neves (PSDB) nas eleições de 2010 e de 2014, e a criminalização da esquerda, vista como intrinsecamente corrupta, formaram uma cultura política crescentemente hostil aos pilares da ordem política de 1988.

Não é razoável supor que essas elites políticas só respondiam a movimentos de base ou lhes emprestaram uma adesão tardia. Tampouco se pode menosprezar os efeitos "de cima para baixo" do uso de recursos ilegais, ilegítimos e violentos na política desde 2014, ao menos. A pura violência das milícias certamente é anterior a esses eventos, mas sua normalização e seu ganho de escala não podem ser entendidos sem que se atente para o efeito demonstração da violência política praticada no andar de cima.

As relações entre a família Bolsonaro e milícias do Rio de Janeiro estão muito bem documentadas. No entanto, a figura do presidente e de seus filhos não pode ser vista apenas pelo prisma da sociabilidade ou de símbolos populares.

Bolsonaro dialoga simultaneamente com as altas patentes das Forças Armadas e os soldados, com o alto empresariado e os caminhoneiros. Ora veste camisas falsificadas de times e usa uma linguagem popular, ora mobiliza elementos de distinção, muitas vezes relacionados à branquitude.

Limitá-lo a uma expressão do imaginário das periferias é problemático e enfraquece o potencial crítico de compreensão do fenômeno. Com isso, se perde de vista o núcleo contraditório do recente processo político brasileiro: tratar Bolsonaro unicamente como figura antissistema implica esquecer que isso é exatamente o que ele deseja parecer. O ex-presidente é sistema e antissistema, em uma combinação espúria.

Efeito e representante autêntico de um "movimento totalitário"? Talvez, mas certamente herdeiro de uma espiral de violência institucional que irradia do topo para a base e de volta.

O rebatimento político-eleitoral de movimentos de base nunca é imediato. As temporalidades são distintas, e movimentos sociais podem se revelar contraditórios quando se expressam politicamente.

No final de agosto de 2018, Bolsonaro contava com menos da metade das intenções de voto de Lula. Quatro anos depois, ele se tornou o primeiro presidente derrotado em uma candidatura à reeleição. Do mesmo modo que eventos podem ser tomados como sinais inequívocos de uma tendência histórica, sobretudo quando vista como expressão do "mundo popular hoje realmente existente", também podem apontar para sentidos diversos.

O artigo de Feltran tem o grande mérito de indicar que o bolsonarismo não se restringe ao predomínio de elites, que enganariam massas confusas. O autor expõe como a crise democrática pós-2013, o novo protagonismo político da ultradireita e o bolsonarismo não apenas repercutem fenômenos reais como expõem parte dos limites da ordem de 1988.

A ênfase nesse elemento, contudo, acaba ofuscando o papel de movimentos de elite na construção do bolsonarismo e oculta os intrincados vínculos que relacionam a vida político-institucional às práticas e aos discursos sociais difusos. Com isso, corre, paradoxalmente, o risco de construir um cenário sem qualquer saída política para as periferias.

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