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Rodrigo Nunes

Levantes como Junho de 2013 não foram horizontais

Rodrigo Nunes analisa em livro novas formas de entender explosões sociais da última década

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Rodrigo Nunes

Professor da Universidade de Essex e da PUC-Rio. Autor de "Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre Bolsonarismo e um Mundo em Transição" e "Nem Vertical Nem Horizontal: uma Teoria da Organização" (no prelo)

[RESUMO] Neste trecho editado do livro "Nem Vertical Nem Horizontal: Uma Teoria da Organização Política", que sai neste mês pela editora Ubu, o filósofo Rodrigo Nunes discute os limites do horizontalismo de movimentos como Junho de 2013 e propõe, no seu lugar, pensar a organização como ecologia.

A ideia de pensar a organização política ecologicamente tem ganhado força nos últimos anos. A própria natureza dos levantes da última década ajudou nisso: protestos de massa com pouca ou nenhuma contribuição de organizações de massa, repletos de partes moventes com conexões variáveis entre si e nenhuma coordenação geral.

Manifestantes em direção à avenida Paulista em protesto contra aumento da tarife de transporte, em junho de 2013 - Joel Silva-17.jun.13/Folhapress

Mesmo sem ser diretamente nomeada enquanto tal, contudo, a ideia já se encontra em circulação há algum tempo. Ela estava implicada, por exemplo, na maneira como Foucault e Deleuze formularam o problema da organização como consistindo em criar "ligações laterais, todo um sistema de redes, de bases populares" que estabelecessem "ligações transversais entre […] pontos ativos descontínuos entre países ou no interior de um mesmo país".

Sob o nome de "área", a mesma ideia foi teorizada na Itália dos anos 1970 como sendo a realidade fundamental do que viria a ser conhecido como Autonomia Operária ou Movimento de 1977.

A ecologia organizacional estava implicada na prática dos movimentos de libertação das mulheres e dos gays, os quais tendiam a lidar com sua pluralidade interna como um dado em vez de uma condição temporária a ser superada.

O aumento da interconectividade global e regional provavelmente fez tanto pela naturalização desse modo de pensar quanto a estagnação, o declínio e a queda das organizações de âmbito nacional que se mantiveram hegemônicas na esquerda por um longo período.

Quanto maior o universo de iniciativas conhecidas se tornava, mais difícil era imaginar uma situação em que a multiplicidade não fosse o ponto de partida. Quando o "movimento dos movimentos" altermundista se constituiu, sua própria diversidade e extensão global tornaram inevitável que fosse abordado de modo ecológico.

Tanto era assim, aliás, que perguntas sobre se era possível descrevê-lo como um movimento, ou se espaços como o Fórum Social Mundial deveriam se constituir eles mesmos como organizações, seriam objeto de infindáveis discussões.

Pessoalmente, lembro-me de dar-me conta das implicações dessa ideia pela primeira vez muitos anos atrás, ao ler o relato de Ward Churchill de uma conversa em que William Jackson, antigo companheiro de Martin Luther King, teria lhe dito:

"Há muitas razões pelas quais não posso apoiar quem incita ações violentas como tumultos, e nenhuma delas é religiosa. É tudo pragmatismo político. Mas vou te dizer: eu nunca deixo um tumulto passar. Sou sempre o primeiro a chegar à prefeitura e a testemunhar no Congresso para dizer a eles: 'Estão vendo? Se vocês estivessem negociando conosco o tempo todo, isso nunca teria acontecido'. Dá resultado, cara. Como nenhuma outra coisa, sabe? […] Rap Brown e os Panteras Negras são as melhores coisas que já aconteceram ao movimento dos direitos civis".

Uma ecologia é menos do que um organismo e mais do que uma organização. "Menos do que um organismo" significa que o surgimento e o funcionamento de seus componentes não são determinados com antecedência por um princípio organizativo unificador, nem suas interações são governadas por um propósito intrínseco de sobrevivência sistêmica.

Diferentemente de um organismo, não há, em princípio, nenhum limite aos modos como os componentes podem se recombinar, e o colapso do sistema não implica necessariamente a morte das partes.

Um ecossistema organizacional é "holístico sem ser um todo real", se entendemos "todo real" como sinônimo de totalidade orgânica. Seus componentes coevoluem de modo contingente, em vez de serem determinados exaustiva e necessariamente por sua constituição mútua, e conservam um grau razoável de autonomia; suas interações, por sua vez, produzem padrões de comportamento sistêmico.

"Mais do que uma organização" significa que uma ecologia não é intencional: não possui limites acordados, não é constituída por um ato de vontade e não é necessário estar consciente dela para integrá-la. Ela não é um tipo de metaorganização que organizações menores se juntam para constituir, da mesma maneira que um ecossistema não é um metaorganismo composto de outros menores.

(Foi justamente para se afastar da noção de Frederic Clements e John Phillips da comunidade biológica como um "organismo complexo" que Arthur George Tansley propôs o conceito de ecossistema em 1935.) Na distinção de Hayek entre ordens espontâneas (kosmos) e deliberadamente constituídas (taxis), a ecologia pertence ao primeiro campo, no qual o segundo está contido.

Se uma ecologia é uma ordem espontânea que envolve outras ordens deliberadamente constituídas, sejam elas organizações formais ou padrões informalmente adotados, não há um protocolo global acordado, muito menos um mecanismo de tomada de decisão abrangente, segundo o qual seus componentes interagem. Os procedimentos são sempre locais, válidos para algumas partes e não para outras, e o mesmo se passa com a deliberação.

Se isso é verdade, porém, e se os levantes da última década podem ser descritos como ecologias, então a caracterização amplamente aceita destes como movimentos horizontais organizados através de assembleias é, na melhor das hipóteses, incompleta.

Afinal, embora permita explicar como funcionava cada lugar em que havia uma assembleia, ela não é capaz de esclarecer como esses diferentes lugares interagiam. Tampouco consegue explicar os casos em que não havia assembleias ou em que elas tiveram um papel secundário (os "coletes amarelos" na França em 2018, as manifestações de 2013 no Brasil), nem como "o movimento das praças" fazia para tomar decisões antes e depois do breve interlúdio em que as grandes assembleias estiveram em funcionamento, em particular as decisões que levaram à ocupação dessas mesmas praças e à criação das próprias assembleias.

Justiça seja feita, porém, foi sempre um segredo de polichinelo que essa descrição era no máximo uma aproximação —uma metonímia que fazia alguns aspectos mais proeminentes se passarem pelo todo.

A ausência de procedimentos globalmente aceitos também significa que a horizontalidade —se entendida como implicando um campo de participação perfeitamente nivelado, tal como aquele supostamente instanciado em assembleias e tomadas de decisão por consenso— tampouco é adequada como maneira de descrever esses movimentos.

Basta considerar o problema de como assembleias distintas em locais distintos interagiam umas com as outras, ou mesmo assembleias distintas no mesmo lugar, mas em dias diferentes. Participantes em um lugar ou dia não tinham voz no que era decidido em outra parte ou momento, ainda que fossem potencialmente afetados por decisões de que não haviam participado.

Além disso, algumas assembleias, devido à sua maior visibilidade, tinham inevitavelmente um impacto maior do que outras nas percepções externas a respeito do movimento. Por último, mas não menos importante, a relação entre o movimento como um todo e o restante da população não era ela mesma horizontal.

Um movimento sempre surge sem autorização prévia e não importa o quão inclusivo possa almejar ser, sempre envolve uma divisão: ele nunca é o todo da sociedade. Por maior que seja um levante, ele "é sempre uma pequena minoria", mesmo que seja uma "minoria massiva", atrás da qual "o ‘país profundo’ conservador desaparece".

Como observou a teórica política Jodi Dean de maneira certeira, "Occupy Wall Street não é efetivamente o movimento dos 99% da população dos Estados Unidos (ou do mundo) contra o 1% no topo. É um movimento que se mobiliza em torno de uma Wall Street ocupada em nome dos 99%".

Novamente, a questão aqui não é lamentar que esses movimentos não estejam à altura de seus princípios, mas expor a incompatibilidade entre esses princípios e a prática real.

Ao refletir uma imagem distorcida para os movimentos, o imaginário do horizontalismo —que não se confunde com as práticas concretas em que as pessoas se engajam, mas a hipótese destas em um ideal abstrato— falsifica a realidade da horizontalidade ao mesmo tempo que estabelece parâmetros impossíveis de respeitar.

O problema surge quando as pessoas confundem auto-organização (que é o efeito emergente de diferentes ações e esforços de organização) e autogestão (que designa um processo deliberativo autônomo) e tentam pensar a primeira (que se refere à ordem global de uma ecologia) nos termos da segunda (que só é possível localmente).

Em uma ordem local delimitada tal como uma assembleia, é possível, em princípio, que uma decisão seja ratificada "por todos", visto que é possível chegar a um acordo a respeito do procedimento para produzi-la e dar um conteúdo enumerável a esse "todos", mesmo que corresponda apenas a "quem quer que esteja presente no momento".

Em uma ordem aberta e espontânea, isto é, por definição, impossível. "Todos", nesse caso, é um conjunto não enumerável e potencialmente infinito e, portanto, nenhum procedimento existe nem poderia ser instituído mediante consulta a "todos". O soberano que poderia ratificar esta ou qualquer outra decisão simplesmente nunca é dado.

Isso significa que, se julgamos a ecologia como um todo pelos mesmos critérios que usamos para decidir se seus componentes locais podem ser chamados de horizontais —por exemplo, que todos que participam neles tenham a mesma oportunidade de se expressar—, descobriremos que a resposta é não.

Simplesmente não há como a interação de ordens locais ou as decisões que levam à criação dessas ordens atender a esses critérios. Segue daí que ou aceitamos que noções como "horizontalidade" e "legitimidade" significam outra coisa em uma situação de auto-organização (em oposição à autogestão), ou seremos obrigados a concluir que as próprias condições de possibilidade dos espaços horizontais não são elas mesmas horizontais.

Nem vertical nem horizontal – Uma teoria da organização política

  • Preço R$ 89,90 (384 pág.)
  • Autoria Rodrigo Nunes
  • Editora Ubu
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