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Marcos Nobre

Como Junho de 2013 levou culpa pelos desastres do país

PT e seus aliados usam protestos como explicação para turbulências ocorridas no Brasil nos últimos dez anos

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Marcos Nobre

Professor titular de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreveu, entre outros, o livro “Limites da Democracia: De junho de 2013 ao Governo Bolsonaro” (ed. Todavia)

[RESUMO] Os 10 anos de Junho de 2013 completam-se agora com o PT de volta ao Planalto, mas o partido e grande parcela da esquerda ainda seguem sem compreender as dimensões dessa grande revolta popular, ou mesmo assumem posição contrária a ela. Consolidou-se uma interpretação dominante de que os protestos foram responsáveis por todos os desastres que se seguiram no período, o que serve para camuflar a incapacidade do sistema político como um todo em responder aos anseios das ruas. Êxito do governo petista, e com ele o futuro do país, dependerá de enfim canalizar a energia daquela multidão para o jogo institucional.

Ovo da serpente é a senha para a interpretação dominante de Junho de 2013. Tentar dizer do que se trata dá mais ou menos no seguinte. Junho teria posto o "ovo da serpente" bolsonarista, ovo que teria sido "chocado" pela deposição de Dilma Rousseff, em agosto de 2016, pela prisão de Lula, em abril de 2018, e pela própria eleição de Bolsonaro, em outubro de 2018. "Ovo da serpente" se tornou a senha para quase todas as desgraças dos últimos dez anos.

Essa interpretação tão vaga quanto dominante pode ser encontrada um pouco por toda a parte: na produção jornalística, em trabalhos acadêmicos, em discussões partidárias, em posts nas redes. Não seria possível nem razoável percorrer todo esse universo aqui. Tomo, então, como exemplo e como exemplar dessa narrativa dominante um trecho do livro de Consuelo Dieguez, cujo título é justamente "O Ovo da Serpente".

Manifestantes invadem a cúpula e o gramado do prédio do Congresso Nacional em protesto do que ficou conhecido como Jornadas de Junho - Pedro Ladeira-16.jun.13/Folhapress

Ao comentar o voto de Bolsonaro, então deputado federal, pela abertura de processo de impeachment contra Dilma, em 17 de abril de 2016, Dieguez escreveu: "O voto de Bolsonaro ganhou destaque na mídia e nas redes sociais. Àquela altura, ele já estava em campanha, e por onde passava era saudado com gritos de ‘Mito!’. Os institutos de pesquisa e a imprensa, contudo, somente captariam o fenômeno em 2018, às portas das eleições presidenciais. E tudo havia começado naquele Ano da Serpente de 2013" (p. 55).

Vale dedicar algum tempo a analisar esse texto. A primeira coisa nele que chama imediatamente a atenção é que os institutos de pesquisa "captaram" as intenções de voto em Bolsonaro naquele ano de 2016. Como "captaram" antes disso. Em dezembro de 2015, por exemplo, o Datafolha registrou 4% ou 5% de intenção de voto em Bolsonaro. E os institutos de pesquisa continuaram "captando" a intenção de voto nele até a eleição de 2018.

O que o texto diz, porém, é que não "captaram" o "fenômeno" Bolsonaro. Ou seja, não "captaram" o que "já estava lá, mas ninguém viu antes de 2018". Momento em que, no roteiro da narrativa do ovo da serpente, são mostrados imagens, cenas e personagens específicos que comprovam "que o fenômeno já estava lá". É o momento em que surgem faixas em favor de uma intervenção militar, pessoas vestindo camisas da seleção, cartazes na linha "Vai para Cuba, vagabundo".

Importa pouco que todas as pesquisas disponíveis mostrem que a extrema direita era absolutamente minoritária na multidão de Junho. Importa pouco que tenham mostrado que a grande maioria das pessoas presentes nas manifestações não se sentia representada por nenhum político, por nenhum partido. Na lógica da narrativa do ovo da serpente, fatos e dados científicos não alcançam mostrar o que cabe mostrar.

Afinal, como diz o trecho do livro de Dieguez citado, "tudo havia começado naquele Ano da Serpente de 2013". Esse "tudo" cada qual preenche como bem entender.

Pode ser com teorias da conspiração, com personagens obscuros que depois ganharam protagonismo, com conluios variados, políticos ou outros. É sempre uma conta de chegada: já se sabe previamente "no que deu", basta mostrar ilustrações escolhidas que "provem" o que, de fato, já está provado de antemão.

Junho em perspectiva global

O que torna inevitável a pergunta: a quem serve essa demonização de Junho? A resposta é um segredo de polichinelo: estabelecer uma ligação direta entre Junho e a ascensão de Bolsonaro e do bolsonarismo é o mesmo que livrar a cara do sistema político pelo que fez ou deixou de fazer em resposta a Junho. Pelo menos do ponto de vista de quem ocupava posições de poder naquele momento, seja a que partido pertença ou tenha pertencido.

Aqui a comparação internacional pode ser esclarecedora. Afinal, Junho é parte do ciclo global de revoltas democráticas de 2011 a 2013. Revoltas que aconteceram contra ditaduras (como foi o caso da chamada Primavera Árabe), em países de democratização recente (como Turquia, Grécia, Espanha, Brasil), em países de democracias mais antigas (como os Estados Unidos).

O Brasil se destaca nessa lista porque, ao contrário das outras revoltas, Junho não foi uma resposta direta à crise econômica mundial desencadeada em 2008, cujos efeitos a população só começou a sentir de fato a partir de 2015.

Como no Brasil, também pelo mundo sistemas políticos não mostraram especial disposição em se autorreformar, mas movimentos surgidos de ruas físicas e virtuais produziram transformações de grande importância, especialmente onde ocuparam canais de institucionalização existentes ou criaram novos.

Foi o caso do Occupy Wall Street nos Estados Unidos, por exemplo. A influência do movimento de 2011 é visível no Democratic Socialists of America, na campanha pela candidatura à Presidência de Bernie Sanders em 2016 e 2020, no Black Lives Matter e no Sunrise Movement.

Junho talvez seja a primeira grande revolta popular na história brasileira a ter sido demonizada pela esquerda —por parte dela, pelo menos— e não pelo conservadorismo de direita de sempre. Seja qual for a atitude tomada pelo sistema político em cada país, o fato é que não se produziu em outros lugares uma narrativa dominante de demonização das revoltas. Como se fossem elas mesmas responsáveis por todas as desgraças futuras. Também esse traço é característico do Brasil.

Apesar de ter-se abraçado ao MDB de Michel Temer que logo depois lhe aplicaria o garrote do impeachment, o governo de Dilma Rousseff e o PT inicialmente construíram a interpretação de que Junho seria o resultado dos avanços alcançados durante os próprios governos petistas.

Algo que ficou resumido em fórmulas como "Quando as pessoas conquistam coisas, querem conquistar mais coisas" ou "Melhorou da porta para dentro, agora as pessoas querem que melhore da porta para fora".

Com o tempo, entretanto, o PT e a parte da esquerda que lidera fixaram majoritariamente a posição de que Junho teria sido dirigido contra o partido e seus governos. Pouco importa que isso não tenha qualquer relação com a realidade, já que os protestos aconteceram sob administrações de todos os partidos que lideravam governos naquele momento, seja na esfera municipal ou estadual.

O que importa é que o PT e seus aliados à esquerda encontraram em Junho o bode expiatório para a própria incapacidade de lidar com protestos que não convocaram, muito menos lideraram.

Junho visto da esquerda

Conforme o tempo foi passando, conforme a opção do PT pelo pemedebismo quase levou à destruição do partido, era sempre Junho a origem de todos os males. Como se ali estivesse a fonte do golpismo mais ou menos permanente que foi se instalando no país. Foi assim que, com o tempo, grande parte do PT e da esquerda passou a interpretar Junho como um movimento anti-PT.

Outras frações da esquerda sem alinhamento automático ao PT, como o PSOL ou os diferentes movimentos autonomistas, não tiveram condições de formulação nem capacidade organizativa para dar direção aos impulsos de Junho em um sentido abrangente.

Em um sentido certamente mais limitado, mas nem por isso menos importante, diferentes movimentos de esquerda canalizaram a energia das ruas para a resistência contra as obras da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016, contra as reformas do ensino médio, pelas lutas feministas e antirracistas.

Mas por pelo menos dois anos, até 2015, nenhuma força política foi capaz de oferecer direção e sentido hegemônicos para a energia de Junho. Nenhuma narrativa de conjunto, nenhuma organização política de porte foi produzida para oferecer rumo prático viável para esses impulsos, para sua canalização institucional em particular.

À esquerda, à medida que o tempo passava, mais e mais foi se firmando como dominante a interpretação de que Junho tinha sido um movimento "de direita", quando não de "extrema direita". Quem, à esquerda, viu em Junho a crítica aos limites da política tal como praticada nos 20 anos anteriores, quem viu ali exigências de transformação necessária do sistema político, recebeu qualificações como "ingênuo", "otimista", "inocente útil". Para falar apenas das qualificações publicáveis em jornal.

Junho visto da esquerda mostrou a real correlação de forças dentro desse campo. O fato de a narrativa do "ovo da serpente" ter se tornado dominante mostra a força real e o enraizamento profundo do PT na sociedade. Mostra a legitimidade da liderança do partido no campo das esquerdas.

A hegemonia da narrativa do ovo da serpente mostra também, ao mesmo tempo, de que maneira o PT se amoldou à ordem pemedebista. A mesma ordem que, durante os 20 anos que precederam Junho, travou qualquer avanço em passo mais acelerado no combate às desigualdades e em favor da democratização da sociedade e do sistema político.

Essa mesma ordem que é louvada como "momento de ouro" da democracia brasileira por quem hoje passa pito em qualquer crítica que visasse a um arranjo menos conservador do que o pemedebismo do período.

Nisso, a tese do ovo da serpente e a posição de parte da ciência política brasileira coincidem: democracia é o que se tinha naqueles 20 anos do arranjo do Real, pedir mais é não apenas irrealista, é perigoso.

Coincidem também, com isso, na chancela do mito petista dos "anos dourados". Um raciocínio não raro complementado por uma suposta natureza intrinsecamente conservadora da população brasileira.

Como se Junho não tivesse sido justamente uma revolta contra a maneira de funcionar do sistema político nos 20 anos anteriores, como se essa maneira de funcionar nada tivesse que ver com o conservadorismo que era seu produto mais vistoso.

Junho como crise de direção política

A eleição de 2014 deu a ilusão de que a energia de Junho tinha sido canalizada para o sistema político. Só que não.

A partir de 2015, variados movimentos de direita que não se sentiam representados no sistema político se colocaram sob o escudo da Operação Lava Jato e passaram a desafiar o governo de Dilma Rousseff. Do outro lado, movimentos progressistas se organizaram para produzir o que se convencionou chamar de duas primaveras: a secundarista e a feminista.

O futuro do PT e da esquerda que o partido lidera depende dessa mesma gente que saiu às ruas sem sua autorização. Depende de entender que uma nova sociabilidade se construiu e que essa nova sociabilidade não se vê representada na maneira de funcionar da política dos 20 anos iniciados com o Plano Real.

Acreditar que o mundo digital que tomou as ruas em Junho pode ser apenas um apêndice da maneira tradicional de fazer política, com sua TV, com seu rádio, com suas obras paroquiais e seus santinhos eleitorais, é abrir o flanco para receber novo garrote político, no estilo do que recebeu em 2016 e em 2018.

Nas eleições de 2022, as candidaturas do bolsonarismo fizeram uso bem-sucedido de combinação de estratégias digitais e estratégias políticas tradicionais. Acho que é um tipo de arranjo que vai prevalecer daqui para frente, não só no Brasil.

É com essa combinação que a extrema direita buscará manter sua hegemonia sobre o campo mais amplo da direita. Do outro lado, é forçoso constatar que Lula venceu em um esquema essencialmente tradicional, o que é, por si só, extremamente preocupante.

Junho é um emblema do risco que corre o PT de ser novamente destroçado pelo mesmo sistema político com o qual cerrou fileiras em 2013 e que quase o destruiu no impeachment de Dilma Rousseff e na prisão de Lula.

Passados dez anos, há que se perguntar por que as forças majoritárias dentro do PT e seus aliados permanentes, como o PCdoB, não deixam para trás a narrativa do ovo da serpente. Afinal, o PT e a parte da esquerda a ele aliada sobreviveram a um impeachment, à prisão de suas lideranças, à prisão de seu principal líder, ao governo Bolsonaro. E conquistou novamente o poder federal.

Talvez porque deixar para trás a narrativa do ovo da serpente significaria admitir que Junho representa antes de tudo uma crise de direção. Significaria constatar que a coalizão de partidos que poderia ter dado sentido e direção abrangentes ao movimento não o fez. Estava no poder federal e entendeu Junho como um movimento de oposição.

Anti-junhismo, doença infantil do petismo

A demonização de Junho vai de par com a incapacidade do PT e do campo mais amplo da esquerda de formular propostas viáveis de rumo e canalização institucional para a energia das ruas. É o que ficou patente, por exemplo, na proposta do governo Dilma Rousseff, ainda em junho de 2013, de uma Constituinte exclusiva para uma reforma política.

A proposta, que já era temerária, indigente e atabalhoada, não chegou a durar 24 horas. Essa incapacidade de formulação e de organização diante das transformações atuais é, talvez, a principal lição de Junho. Deveria ser preocupação prioritária para o PT e para o campo da esquerda, de maneira mais ampla.

Junho foi um importante ponto de encontro de gerações. Em especial, foi um momento de intersecção da geração chamada millennial e de integrantes da geração seguinte, a intitulada geração Z.

Saíram às ruas e ocuparam as redes para contestar as obras da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016, ocuparam escolas por todo o país, fizeram a primavera feminista, apoiaram candidaturas como a de Marielle Franco, participaram da construção da Coalizão Negra por Direitos.

Vai se dizer a essas pessoas que a experiência de vida que moldou sua maneira de ver a política foi um movimento de direita ou de extrema direita? Não é apenas falso, factualmente falso. É uma estupidez política.

Dada a importância e centralidade do PT no sistema político, em sua visão de Junho joga-se também o próprio futuro do país. A situação hoje é certamente muito mais difícil do que em 2013.

A ordem pemedebista a que o PT se conformou, a mesma ordem que quase destruiu o partido em 2016 e em 2018, ganhou uma nova cara. O novo pemedebismo, anabolizado por orçamento impositivo (secreto também, sempre que possível) e financiamento público indecente, já deu provas de que sua autonomização relativa frente a ocupantes do Executivo pode servir a qualquer força política, da esquerda à extrema direita.

De outro lado, o mito dos "anos dourados" dos governos petistas, o mito da picanha e da cerveja, já cumpriu seu papel na eleição de Lula em 2022. É preciso virar essa página e encarar de frente a situação atual.

Estamos no "decênio decisivo" para evitar o colapso ambiental, como diz Luiz Marques. A situação é de aperto orçamentário e ambiente internacional hostil. Estamos sob ameaça de uma extrema direita forte e organizada que precisa ser isolada para que não destrua a democracia.

No momento, a única força organizada capaz de liderar uma frente contra essa ameaça é o PT. Ao mesmo tempo, o PT não conseguirá ser bem-sucedido nesse enfrentamento se não conseguir ver adiante. E, para conseguir ver adiante, o primeiro passo necessário é o da reconciliação com a multidão de Junho.

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