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Guillaume Long

O árduo caminho para a integração sul-americana

Lula terá que convencer alguns governos de que a Unasul não é um projeto ideológico

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Guillaume Long

Analista no Center for Economic and Policy Research (Washington DC, EUA); foi ministro, chanceler e embaixador do Equador

A cúpula dos presidentes da América do Sul em Brasília, nesta terça-feira (30), é de particular importância para o futuro da região. O presidente Lula tentará convencer os 12 presidentes dos países fundadores da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), ou aqueles que comparecerem, de que o regionalismo sul-americano deve ser a opção estratégica para enfrentar os desafios da nova ordem multipolar que está se formando. Também é preciso persuadi-los de que a Unasul é o guarda-chuva institucional sob o qual essa integração deve ser construída.

A tarefa não é fácil, especialmente considerando o contexto sul-americano atual, marcado pela desunião. Lula terá de demonstrar paciência e capacidade de escuta para que todos os chefes de Estado sintam que suas preocupações estão sendo levadas em conta. Mas, ao mesmo tempo, terá que enviar uma mensagem clara de que o trem da Unasul está em movimento e que o convite é para que os presidentes subam a bordo, não para que o parem.

O presidente Lula e o mandatário argentino, Alberto Fernandéz, em Buenos Aires, em janeiro. - Luis Robayo/AFP - AFP

O retorno do Brasil e da Argentina à Unasul, em abril do ano passado, deu nova relevância a uma organização que muitos consideravam moribunda. Hoje, dos 12 membros fundadores originais, 7 continuam membros, mas 5 —Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Uruguai— ainda não retornaram depois de denunciar o Tratado Constitutivo da Unasul, entre 2018 e 2020.

A primeira tarefa de Lula será convencer alguns governos mais conservadores de que a Unasul não é um projeto ideológico, muito menos um clube de amigos de esquerda. O conservadorismo político conseguiu estabelecer que somente a esquerda é "ideológica", enquanto a direita encarna o "pragmatismo". Lula terá de ignorar essa manifesta falácia intelectual para insistir fortemente na natureza estratégica —e não ideológica— de uma maior convergência entre os dois principais subsistemas sul-americanos, Atlântico e Pacífico, a fim de criar um espaço de governança regional de peso real no sistema internacional. É a geografia, não a política ou a ideologia, que define a composição da Unasul.

É provável que vários dos convidados concordem com a criação de um espaço sul-americano, mas talvez se oponham a fazê-lo por meio da Unasul, favorecendo, em vez disso, a criação de um novo modelo. De fato, foi assim que o Fórum para o Progresso e Integração da América do Sul, mais conhecido como Prosur, foi criado —uma estrutura vazia que agora deixou de funcionar.

Lula (à dir.), o ex-presidente da Venezuela Hugo Chavéz (centro) e o então secretário-geral da Unasul e ex-presidente da Argentina, Néstor Kirchner, durante evento em 2010 na capital venezuelana, Caracas - Divulgação Palácio Miraflores - 6.ago.2010/Reuters - Divulgação Palácio Miraflores/Reuters

Lula, no entanto, terá de insistir na Unasul que, significativamente, conta com um tratado, para o qual foram necessários muitos anos de árdua gestão política e diplomática: as cúpulas presidenciais em Brasília e Guayaquil, em 2000 e 2002; a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações na cúpula de Cochabamba, em 2004; a criação da Unasul na cúpula da Ilha Margarita, em 2007; a assinatura do Tratado Constitutivo da Unasul na cúpula de Brasília, em 2008; a ratificação gradual do tratado pelos 12 Parlamentos da região; e, com sua nona ratificação legislativa, a entrada em vigor do tratado em 2011.

Esse longo e tortuoso caminho em direção a uma Unasul juridicamente estabelecida permitiu que a organização tivesse um horizonte acordado, regras de coexistência e uma estrutura institucional incipiente, incluindo uma secretaria-geral e 12 conselhos setoriais que já estavam começando a moldar políticas conjuntas. Sem um tratado, não pode haver organização internacional, mas apenas presidências temporárias, gerenciadas pelo serviço de relações exteriores dos países que se sucedem a cada ano, sem dar à entidade criada sua própria força.

Ter um tratado significa gerar um compromisso vinculativo que transcende os altos e baixos políticos da região e de seus membros. Não existe nenhum projeto regional ou multilateral de longo prazo que não tenha um tratado para seu funcionamento.

Também é importante partir do fato de que o Tratado Constitutivo da Unasul ainda está —apesar dos esforços para acabar com ele— em pleno vigor e efeito. A interpretação que afirma que para que o tratado permaneça em vigor é necessário o mesmo número de membros para que as ratificações entrem em vigor, ou seja, nove membros, não tem fundamento e ignora o direito internacional. Como afirma a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados: na ausência de uma cláusula de caducidade, o tratado permanece em vigor em nível internacional enquanto pelo menos dois Estados permanecerem membros da organização.

Portanto, a Unasul existe e atualmente tem sete membros. Lula deve, é claro, encantar, convencer, convidar; mas, ao mesmo tempo, deve ser claro sobre o caminho que o Brasil decidiu seguir.

Há vários incentivos para que os países que antes não gostavam da Unasul voltem gradualmente a participar da união. Projetos estratégicos —por exemplo, em infraestrutura, por meio de uma versão mais atualizada e ambientalmente sustentável da Iirsa (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana) ou do Cosiplan (Conselho de Infraestrutura e Planejamento)— devem atrair interesse. O efeito gravitacional do Brasil é uma realidade. Se o Brasil fizer da Unasul uma prioridade real de política externa, mais cedo ou mais tarde os países sul-americanos estarão inclinados a retornar à organização.

Na reunião presidencial desta terça-feira (30), maior abertura, flexibilidade e pluralismo devem prevalecer, mas sempre sem desespero: afinal, mesmo que várias nações se recusem agora, os países da região não acabarão se excluindo de um bloco regional sul-americano que lhes é benéfico. E aqueles que (ou os herdeiros imediatos daqueles que) saíram da Unasul para se diferenciar politicamente dos governos progressistas que os antecederam e se insinuaram temporariamente com o monroísmo radical do governo Trump nem sempre estarão no poder.

Além dos passos políticos e processuais que ainda precisam ser dados para relançar a Unasul, somente com a elaboração de novas políticas sul-americanas de segurança, saúde, infraestrutura e meio ambiente, entre tantas outras que a região necessita urgentemente, poderemos dizer que retomamos o caminho de nossa integração.

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